terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Ensaio sobre a dádiva

 

Que coisa são as nuvens

Por José Tolentino Mendonça









O MIÚDO FICOU ALI POR MUITO, MUITO TEMPO, OBSERVANDO O ESPAÇO E A NOITE PROFUNDA COM BILIÕES DE LUZINHAS BRANCAS QUE CINTILAVAM



Seria importante, é claro, que o Natal não ficasse reduzido à sua expressão sociológica, mas para isso precisamos iluminar criticamente algumas das nossas práticas. Um texto referencial do século XX, o “Ensaio sobre a Dádiva”, de Marcel Mauss, deixou explicado que o fio condutor de todo o sistema de trocas é a noção de “aliança”. Para Mauss, a argamassa concreta das sociedades é essa constante transação do dar-e-receber e do receber-e-retribuir. Ora, uma manifestação sazonal desse postulado são as prendas de Natal. Lidamos, no fundo, com elas como dispositivos simbólicos capazes de produzir ou de sedimentar alianças, e de fazê-lo talvez mais eficazmente (ou, pelo menos, mais rapidamente) do que outros fatigantes recursos existenciais que experimentamos. Mas felizmente o exercício da dádiva rompe por vezes com o básico esquema binário. O dom nem sempre se esgota na previsibilidade da troca: pode tornar-se uma atividade pura, uma excedência que transcende o cálculo. É o próprio Marcel Mauss que recorda que a dádiva reclama a disponibilidade para, em algum momento, cedermos ao outro uma parte de nós mesmos.

Um dos mais inesquecíveis contos de Natal foi escrito por Ray Bradbury creio que para dizer isso. A cena passa-se a 24 de dezembro de 2052, numa nave espacial, a caminho de Marte, quando essas viagens se tornaram populares. Um casal nova-iorquino leva o filho pequeno pela primeira vez nesse vaivém interplanetário. No terminal terrestre surge, porém, um contratempo aborrecido: traziam uma árvore de Natal com belas luzinhas brancas e um presente para o filho (sabiam já que passariam o Natal algures no espaço, ainda distantes do seu destino), mas na alfândega os funcionários mostraram-se intransigentes. A mãe estava inconsolável, o pai furioso, mas decidiram não partilhar essa notícia com o rapaz. Embarcariam e alguma ideia lhes ocorreria. Com este pensamento adormeceram na nave. 

Era quase meia-noite — pelo menos os relógios regulados pela hora de Nova Iorque assim o diziam — quando o miúdo os acordou: “Quero ver o espaço através da escotilha... Quero saber onde estamos.” A escotilha era o único óculo da nave, uma janela ampla de cristal com uma espessura impressionante. Mas o pai, que não parara de matutar na árvore de Natal e no presente apreendidos, trava o filho: “Deixa-me ir primeiro tratar de um assunto e venho depois buscar-vos.” E continuou: “É que faltam 30 minutos para o Natal.” A mulher olhou-o atónita, sem compreender. O miúdo vibrou: “Sim, sim. Mal posso esperar pela árvore que me prometeram e pelo presente.” Os olhos da mãe redobraram de aflição, mas o pai levantou-se e subiu em direção à ponte. Deixou-os a sós cerca de 20 minutos e regressou a sorrir: “Vamos. É quase hora.” Percorreram um corredor até estacionar perante uma porta fechada. O pai bateu três vezes, e depois duas, segundo um sinal previamente combinado, e, quando a porta se abriu, alguém apagou as luzes da cabina. “Entra, filho” — disse o pai. “Está escuro” — retorquiu o rapaz. “Segura as nossas mãos.” E assim foi. Entraram naquele compartimento. Estava realmente muito escuro. Diante deles apenas o grande óculo de cristal através do qual podiam olhar a vastidão. No compartimento às escuras uma voz, que não a deles, começou então a entoar uma velha canção ligada à quadra. “Bom Natal, meu filho” — sussurrou-lhe o pai. O miúdo avançou lentamente até colar a cara ao cristal frio da escotilha. E ficou ali por muito, muito tempo, observando o espaço e a noite profunda com biliões de luzinhas brancas que cintilavam.

E-Revista, Expresso, Semanário #2512, 18 de dezembro de 2020

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