terça-feira, 29 de dezembro de 2020

+Leitur@s | 1984

 



1984
Fido Nesti (a partir de George Orwell)
Alfaguara, 2020
226 págs.
Banda desenhada


Adaptar para a banda desenhada o romance de George Orwell seria sempre uma audácia, sobretudo quando existem três filmes (1954, 1956 e 1984) que tanto contribuíram para plasmar no imaginário coletivo uma concretização visual da narrativa orwelliana. 

Nesta versão, o autor brasileiro Fido Nesti não foge do texto de Orwell, usando narrativa e diálogos sem grandes alterações, mas faz um trabalho exemplar de redução do verbo ao essencial e constrói uma narrativa que mantém o enredo original sem prescindir do gesto de criação que faz deste novo livro uma obra notável. A linha clara do autor é aqui enriquecida por texturas que se sobrepõem, jogos de sombra e um domínio apurado do uso de diferentes planos. Acrescente-se uma paleta cromática soturna e bem delimitada, entre sépias, cinzentos e alguns vermelhos, ganhando intensidade em momentos-chave (o episódio da tortura de Winston Smith é disso exemplo). Entre máquinas para controlar o pensamento, paisagens urbanas sufocantes e quotidianos que só escapam à opressão se viverem miseravelmente, Nesti cria uma gramática visual tão coerente que consegue estender os sentidos do texto de Orwell em direções imprevisíveis. 

Numa narrativa visual rica em pormenores, Nesti recria uma sociedade onde o controle do Estado e o apagamento da individualidade são estruturantes, mas o que mais fortemente atravessa esta banda desenhada é a desolação, profunda e capaz de macular constantemente quaisquer traços de humanidade. Não há leveza, ternura ou compaixão que sobrevivam, o que faz deste um livro devastador, mas pelo tanto que incita à reflexão e ao questionamento é de uma devastação comovente que se trata: a empatia aniquilada no mundo erguido pelo Grande Irmão não deixa de nascer a cada vinheta, através da implicação direta do leitor. E talvez esteja na empatia a chave para evitar cenários distópicos.

Sara Figueiredo Costa. E-Expresso Revista, Semanário#2513, 24.12.2020

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