O
Livro do Desassossego foi o resultado da descoberta e do estudo da
célebre “arca pessoana”. A publicação é de 1982 e Jacinto do Prado
Coelho, Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha são os artífices. É um
conjunto de fragmentos, uma espécie de diário, pensamentos, reflexões,
da autoria de Fernando Pessoa (1888-1935), um quase ortónimo, uma vez
que o poeta lhe dá nome próprio, Bernardo Soares, ainda que a primeira
parte seja atribuída a Vicente Guedes ou quiçá ao próprio Pessoa.
Como
tem sido afirmado, há como que uma autorrepresentação do próprio
através de um artifício criativo. No fundo, é o próprio poeta que
encontramos, com a multiplicidade de temas e de desígnios. Ou seja, para
além dos heterónimos principais de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e
Ricardo Reis, encontramos em Bernardo Soares uma chave que nos permite
ligar a heterogeneidade da heteronomia à identidade de quem reúne essa
diversidade.
Bernardo
trabalha num escritório na Baixa de Lisboa, como o próprio Pessoa.
Seguimos os seus passos. Podemos sentir a sua solidão, os receios, o
sentido e não sentido da vida, os temores, a morte, o amor e vários
outros temas sobre a existência. A ideia de desassossego significa
inconformismo, criatividade, intranquilidade, angústia, dúvida,
aceitação e recusa.
Se muitos referem o pessimismo de Pessoa, a verdade é
que, em toda a sua obra, percebemos que a consciência certa do valor
próprio. É verdade que Pessoa apenas publicou em vida um livro, Mensagem (1934), mas quando estudamos o conteúdo da “arca”, percebemos
que o poeta foi escrevendo para a posteridade. “Entre mim e a vida há
um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu
não lhe posso tocar”. E quando começa por apresentar o quase
heterónimo, diz: «Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por suas
ideias, seus sentimentos, seus modos de ver e de compreender, não se
distingue de mim pelo estilo de expor. Dou a personalidade diferente
através do estilo que me é natural, não havendo mais que a distinção
inevitável do tom especial que a própria especialidade das emoções
necessariamente projeta”.
O
mestre Caeiro prenuncia, Campos afirma-se por si, até demarcando-se de
Pessoa, mas não deixa de procurar enriquecê-lo e de torná-lo relevante.
“Cada um tem a sua vaidade, e a minha vaidade de cada um é o seu
esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são
algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…” “Tudo me interessa e nada
me prende. (…) Tenho fome da extensão do tempo e quero ser eu sem
condições”.
Foi
Jorge de Sena quem primeiro deu importância à coerência dos fragmentos
de Pessoa, ao seu carácter autobiográfico e ao facto de estarmos perante
uma espécie de outro autor que, no entanto, tinha tudo a ver
diretamente com Pessoa, ele mesmo. Mas Sena, ao partir para o Brasil,
foi deixando Fernando Pessoa, para se render ao génio multiforme de
Camões.
Bernardo
Soares faz parte do universo Pessoa, que ele procura analisar fora de
si. “Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que
baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé,
vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face
pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava
interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar
indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele
sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito…”
O
Livro do Desassossego é um livro póstumo, autobiográfico, publicado
quase cinquenta anos depois da morte do autor, e funciona como o
conjunto de reflexões relativamente ao permanente enigma que Fernando
Pessoa representa…
Agostinho de Morais
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 31 de agosto de 2019
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