segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Memorialismo e feminismo





Fernanda de Castro (1900-1994), mulher de António Ferro, também escreveu as suas memórias




Da marquesa de Rio Maior, a Olga de Morais Sarmento ou a Luzia Grande e, mais perto de nós, a Fernanda de Castro, as memórias foram um instrumento de afirmação social e literária das mulheres
TEXTO DIOGO RAMADA CURTO

N
uma série de crónicas de 1971, Vitorino Nemésio elencou as mais importantes memórias escritas em português. De José Liberato e Francisco de Aragão Morato, a Luz Soriano e ao conde de Lavradio; e de Thomaz de Mello Breyner a Norton de Matos e Cunha Leal; foi em Raul Brandão que encontrou um dos melhores exemplos do género. A escrita de memórias foi, entre nós, cultivada mais do que se julga. Ao longo do século XIX, as mesmas proliferaram. Que não se argumentasse, pois, com a sua escassez. O que estava em causa era só a indiferença por parte dos leitores e editores em relação a elas (“Jornal do Observador”, ed. Artur Anselmo, INCM, 1999, pp. 34-39, 43-45).

No interior da tradição memorialística portuguesa, a orientação mais frequente é conservadora. Trata-se de uma hipótese que necessita de ser demonstrada. Primeiro, por se tratar de uma prática de escrita centrada no universo familiar, enquanto legado das preocupações pela genealogia no seio de linhagens e relações de parentesco (Paula Morão, “Prefácio”, in Marcello Mathias, “Diário de Paris 2001-2003”, Oceanos, 2006, p. II). Conforme escreveu a marquesa de Rio Maior (1841-1920): “Em variadíssimos casos, por exemplo, descobri que pessoas que me inspiravam e mereciam confiança e amizade especiais, estavam de alguma forma ligadas a mim, por parentescos ou afinidades em tradições comuns” (“Memórias da Marquesa de Rio Maior”, Parceria António Maria Pereira, 1930, p. 167).
Segundo, porque as memórias tendem a ser testemunho de um individualismo antigo. Este último surge, quase sempre, temperado pela linguagem das virtudes, usada no confronto com a representação de um mundo tão mudado, muitas vezes considerado hostil, visto a partir de longe, de um qualquer exílio — externo ou interno — ou de uma experiência que vitimizou os próprios autores.
A reprodução desse mesmo conservadorismo fazia-se por via das famílias e do enaltecimento das suas histórias, mas também através de demonstrações de um individualismo antigo. Radicava, ainda, num profundo sentido das deferências, impostas por uma hierarquia social rígida. Uma perceção, aliás, tão profunda quanto naturalizada, sobretudo, no caso de memórias escritas por mulheres.
É o caso de Branca de Gonta Colaço (1880-1945), que tinha “em projeto e creio que principiado um livro de memórias que a morte veio interromper” (“Abençoada a hora em que nasci”, Parceria António Maria Pereira, 1945, p. 18). Foi ela quem editou as “Memórias da Marquesa de Rio Maior”. No prefácio deste livro, onde a marquesa contou o choque representado pela implantação da República, Branca de Gonta recordou os serões passados no Palácio da Anunciada, ao longo dos invernos de 1913 a 1918. E revelou a admiração que tinha pela marquesa, considerada distante não só por uma questão de idade, mas também por uma atitude e posição que reconhecia como sendo superiores. Nas suas palavras: “A despeito da diferença de idades, e de categorias sociais, o meu espírito encontrava no seu demasiado encanto (...). O seu cuidado máximo era apagar qualquer vislumbre de superioridade fidalga por todas as linhas de seus avoengos, desconhecia os preconceitos de casta.”
INFÂNCIA INFELIZ E CASAMENTO FUGAZ
Olga de Moraes Sarmento (1881-1948) contou, nas suas memórias, a sua infância infeliz. O pai, um oficial do exército, graças às suas aventuras amorosas, delapidou o património e acabou por se separar da mulher. Esta passou mal, tendo sido obrigada a vender tudo o que lhe restava em casa. Incluindo uma colcha que a pequena Olga levou a casa de uma família de posses.
Anos volvidos, depois do casamento fugaz com um jovem oficial e de uma viuvez precoce, a consciência profunda da decadência da família de origem acabou por ser compensada por uma acumulação de referências a outras mulheres e homens de alta roda: a duquesa de Palmela, mecenas das artes, benfeitora dos pobres e amiga de Sarah Bernhardt e Eleanora Duse; Maria Amélia Vaz de Carvalho, autora da biografia do duque de Palmela; a condessa de Proença-a-Velha, com o seu salão, onde não faltava Teófilo Braga, apreciado pela sua erudição (aliás, à mesma condessa já Olga prestara homenagem em livros de 1906 e 1909); a grande investigadora da literatura portuguesa que foi Carolina Michaëlis; a já referida Branca de Gonta, que lhe apresentou Virgínia Vitorino, ainda hoje um caso de lesbianismo emancipado; a elegante Maria Luísa Pinto Barreiros; o conde de Sabugosa; o conde da Foz, ao lado de outros grandes boémios como Júlio Mardel, D. João da Câmara; Thomaz de Mello Breyner, conde de Mafra; o escultor Teixeira Lopes; e Afonso Lopes Vieira.
O regicídio não ficou esquecido e toda a família real foi lembrada, com enorme dedicação, indo a devoção mais elevada para a Rainha D. Amélia (cujas cartas do exílio Olga publicou). Uma particular atenção é, ainda, dada à Lisboa dos palácios e das grandes festas, como aquela que deu Helena Castelo Melhor (princesa Robert de Broglie).
SNOBISMO COSMOPOLITA
Olga defendeu-se dos que a acusavam de snobismo. Argumentou que só lhe interessavam as elites do espírito, do sangue ou das tradições e, finalmente, do instinto. Mas sublinhou que este último era equivalente ao povo, de modo a deixar de fora desse triângulo as “camadas intermédias onde se infiltra e instala a chamada ‘burguesia’”. Ou seja, o que estava em causa era o fascínio por uma alta roda, finíssima, um à-vontade com o povo, e o desprezo por uma burguesia de meia-tigela.
As memórias de Olga representam, também, uma exibição de cosmopolitismo chique e aristocrático: do Brasil, onde privou com toda a aristocracia, a Nova Iorque, e, na Europa, de Madrid a Paris, sem esquecer muitos outros países e capitais e uma peregrinação a Lourdes. Mais os 30 anos do que denominou “um afeto perfeito” com a baronesa de Zuylen, filha dos barões de Rothschild, que ajudou a sair da França ocupada pelos nazis e que, só assim, foi salva das “torturas de Dachau”. Cinematográfica e terna é a descrição do modo como a baronesa, que partira antes de Biarritz, esperou pela amiga, muito provavelmente sua amante, na fronteira espanhola, junto ao seu Rolls Royce. Vieram juntas para Portugal, mas acabaram nos Estados Unidos. Finda a Guerra, voltaram ambas para Lisboa.
Foi sobre a Lisboa do final dos anos 40 que escreveu: “Não me habituo, não me habituarei nunca, a esta espécie de aridez mental a que parecemos voluntariamente condenar-nos, a este ambiente de ‘senhoras vizinhas’ que tudo rege segundo os seus códigos do preconceito, a este ‘parece mal’, a esta singular suspeita necessária ou ácida desconfiança com que andamos todos a olhar uns para os outros” (“As Minhas Memórias”, Portugália Editora, 1948, pp. 354-355).
Segundo as mesmas memórias, teriam também de ser considerados, na geração anterior, Eça, Fialho, Ramalho e Bordalo; os seus contemporâneos Malheiro Dias, Lopes Vieira, José de Figueiredo e Raul Lino; e, ainda, Leitão de Barros, João Couto, Diogo de Macedo, Aquilino (com a sua “rudeza nativa”), Amélia Rey Colaço e João Villaret. Quanto a salões, que não faltavam em nenhuma cidade que se prezasse, só contava com as exceções de quem abria as suas requintadas casas aos artistas: a marquesa de Cadaval, cujo trabalho pela elevação do gosto musical continua a ser hoje reconhecido de modo consensual; e Elisa de Sousa Pedroso, filha dos condes de Carnaxide e presidente do Círculo de Cultura Musical (à qual já dedicara uma nota em “Arte, Literatura & Viagens”, Livraria Central, 1909, pp. 59-63).
O snobismo extremo de Olga de Moraes Sarmento explica a sua capacidade para abraçar causas emancipatórias. Fosse do ponto de vista do género e, mais concretamente, da sua relação com a baronesa de Rothschild. Fosse em relação às desigualdades raciais, fundadas na escravatura. Tal como escreveu, ainda jovem: “A emancipação dos escravos da América do Norte deve-se a Henriqueta Stowe que, com a publicação do seu belo livro, ‘Uncle Tom’s Cabin’ — genial criação cuja influência social foi tanta que podemos considerá-la como um dos mais importantes agentes da realização desse passo gigantesco do progresso e da civilização” (“Problema Feminista”, Lisboa, 1906, pp. 33-34).
CONSERVADORAS E ESCRITORAS
Fernanda de Castro (1900-1994), mulher de António Ferro, conta nas suas memórias que a sua iniciação no campo literário fora feita graças às leituras e encorajamentos que merecera de Branca de Gonta, de Luzia Grande e do conde de Sabugosa. Luzia (1875-1945) é, nas mesmas memórias, equiparada a Katherine Mansfield, com quem tinha “parecenças de irmã”. Fernanda de Castro e Teresa Leitão de Barros (1898-1983) — esta, nas suas funções de testamentária literária oficial — publicaram uma única obra póstuma de Luzia, intitulada “Dias Que Já Lá Vão” (1946). Trata-se de um livro que integrou a coleção da Tavares Martins, dirigida por António Ferro, composta tanto por traduções, como por originais, e que, pelo menos na sua programação, chegou a contar com a colaboração de outras mulheres.
Foi o caso de Rachel Bastos, mulher de José Osório de Oliveira, autora de alguns romances importantes, hoje totalmente esquecidos; de Maria Archer, que se encontrava num dos momentos de maior sucesso literário; de Oliva Guerra; de Natércia Freire; e da muito mais jovem Sofia de Melo Breiner Andersen, de quem se chegou a anunciar a tradução de “Benção”, de Claude Sylve.
Por publicar, segundo os principais estudiosos de Luzia, ficaram as memórias e a volumosa correspondência cuja localização importaria apurar tendo em vista a sua edição, sobretudo, o livro que se encontrava pronto, intitulado “Pelos Caminhos da Vida, Jornal I” (José Martins dos Santos Conde, “Luzia, o Eça de Queiroz de Saias”, Portalegre: Edição de autor, 1990; Cláudia Sofia Silva Neves, “O Reino Encantado de Luzia: A Crónica da Vivência e a Eterna Busca do ‘Eu’”, Lisboa: CLEPUL, 2017).
A IRREVERÊNCIA DE LUZIA
Autora de uma série de livros de forte sentido autobiográfico, Luzia casou-se muito jovem, na Madeira, mas divorciou-se, em novembro de 1911, de um marido que a maltratava. “Seulette, seulette, sans compagnon ni maître...”, como escreveu nas suas memórias inéditas. Desde, então, dividiu-se em viagens pela Europa; a frequência de salões literários, onde primava pela elegância, como aquele que manteve, em Lisboa, a Santa Catarina, Maria Amália Vaz de Carvalho; e uma extrema solidão que, talvez, explique o carácter introspetivo da sua obra, associada a uma saúde débil.
Augusto de Castro chamou-lhe o “Eça de saias”, devido à sua capacidade para observar e ironizar sobre os usos e costumes de Lisboa (“Diário de Notícias”, 13-12-1956). Ou, como ela própria, se definiu: “espectadora das comédias do mundo”, sobretudo da sociedade da mais alta-roda que frequentou em Lisboa, Funchal e Portalegre (“Dias Que Já La Vão”, Porto: Livraria Tavares Martins, 1946, p. 239; “Cartas do Campo e da Cidade”, Lisboa: Portugália, 1923).
O seu feminismo assumiu contornos próprios. Como escreveu, em forma de carta: “Tu bem o sabes, eu não suporto aquelas escritoras de quem se diz: têm a inteligência viril, escrevem como um homem... Com esta minha perigosa mania de evocação, oiço-lhes logo a voz grossa, vejo-as de peitilho de goma, colarinho alto, bengala e cachimbo” (“Cartas do Campo e da Cidade”, p. 195). Em “Cartas d’uma Vagabunda”, Luzia assumiu, ainda, a sua atitude irreverente, quando escreveu que “por distração e... talvez por um bocadinho de implicação também, faço sempre o contrário do que o código elegante manda fazer”. E, num dos seus últimos livros, “Última Rosa de Verão (cartas de mulheres)”, de 1940, Luzia meteu-se na pele de Ana Guiomar, a quem fora atribuída a tarefa de educar Nuno, primo de uma amiga e com metade da sua idade. Apesar das diferenças, educadora e educando apaixonaram-se, num quadro que é o do amor impossível. A irreverência estava, precisamente, no direito à paixão por parte da mulher mais velha, que quer fugir às convenções.
DISTINÇÃO SOCIAL E TRADIÇÃO MEMORIALÍSTICA
Enfim, da marquesa de Rio Maior, editada por Branca de Gonta, a Olga de Morais Sarmento ou a Luzia Grande e, mais perto de nós, a Fernanda de Castro, as memórias foram um instrumento de afirmação social e literária das mulheres. O seu conservadorismo, as suas ligações a uma cultura política monárquica ou a sua proximidade com os círculos do Estado Novo não se constituíram em obstáculo a tomadas de posição irreverentes e a processos de emancipação feministas. Pelo contrário, o conservadorismo das mesmas memórias funcionou tal como se a distinção social só pudesse ser sustentada por quem tinha a segurança e a autoconfiança para transgredir em relação às normas vigentes e ao medo do parece mal.
Resta saber se as memórias conservadoras escritas por mulheres integravam uma tradição memorialística portuguesa ou estavam relacionadas com exemplos que transcendiam a cultura literária nacional. É o que sugere a referida coleção de “Contemporâneos”, de Ferro, ao publicar várias traduções, como a do “Diário”, de Katherine Mansfield. O mesmo se diga do ato de dissimulada irreverência em que se constituiu a tradução por Oliva Guerra de “O Homem é Forte”, da autoria de Corrado Alvaro — romance que fora publicado originalmente em 1938 e merecera a censura dos regimes fascista e nazi, respetivamente, em Itália e na Alemanha.
E-Expresso Revista, 31 de agosto de 2019


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