Michel de Montaigne
Na
célebre Torre de Montaigne, quando subimos à sala onde o pensador
escrevia, olhando os campos de Bordéus, há uma pergunta fundamental, a
que Michel Eyquem, Senhor de Montaigne (1533-1592), procurou responder,
ao longo da vida: “Que sais-je?”. É essa a pergunta a que não podemos
fugir – e que tem de estar presente em toda a nossa vida. Se quisermos
simplificar, podemos dizer que Montaigne foi um dos escritores que
inaugurou a modernidade do pensamento, ao refletir na primeira pessoa,
como “eu”.
Francis
Bacon (1561-1626) seguiu-lhe as passadas, e pode dizer-se que
consolidou o “ensaísmo”, criado por Montaigne. António Sérgio, Sílvio
Lima e Eduardo Lourenço seguem esse caminho fecundo, no caso português.
E, falando de Bordéus, temos de lembrar, num rico roteiro intelectual, Charles de Secondat, Senhor de Montesquieu (1689-1755), autêntico
criador da democracia moderna.
Edgar Morin não se tem cansado de
recordar a afirmação de Montaigne de que mais vale uma cabeça bem feita
do que uma cabeça bem cheia, por isso o mestre bordalês criticou a
educação livresca e formalista, propondo uma educação orientada para a
experiência e para a ação (o “saber de experiências feito” que Duarte
Pacheco Pereira defendeu ainda no século XV). Mais do que uma instrução
livresca, importaria ligar as pessoas à vida vivida e aos seus assuntos
urgentes, sem prejuízo da compreensão do tempo e da reflexão, bases do
sentido crítico. A educação visa o julgamento crítico, a atenção e o cuidado.
Pelo
lado da Mãe, Montaigne descendia de judeus portugueses. O latim foi
quase a sua língua materna, uma vez que seu Pai lhe deu como tutor um
alemão que apenas falava latim com o discípulo – e que despertou no
jovem um espírito vigilante, atento e metódico, aberto à novidade.
Estudou no célebre Colégio de Guienne, cujo diretor foi André de
Gouveia. Formou-se em Direito e foi magistrado em Périgueux e Bordéus,
onde se tornou amigo de Étienne de La Boétie (1530-1563), o autor do Discurso sobre a Servição Voluntária. É inesquecível o que Montaigne
disse de seu amigo, quando ele morreu: “parce que c’était lui, parce que
c’était moi”… E pode dizer-se que o conhecimento que temos da obra de
La Boétie, deve-se ao empenhamento de Montaigne na sua divulgação.
Viajou pela Suíça, Alemanha e Itália durante dois anos (1580-1581) e
elaborou um diário de viagem, publicado no século XVIII. Apesar de
dividir o seu tempo entre a administração da herança de seu pai, o
desempenho de funções públicas na Câmara de Bordéus e a procura de
condições de paz para os conflitos religiosos, nunca abandonou a
reflexão pessoal, que constitui um testemunho fundamental para a
compreensão do seu tempo.
Os Ensaios abrangem três volumes, os dois primeiros publicados em 1580 e
1588, compreendendo este o terceiro volume. Em 1595, publica-se uma
edição póstuma destes três livros com novos acrescentos. São
autorretratos introspetivos de um homem, mais do que de um filósofo. É a
singularidade que Montaigne procura. É assim um pensador sobre a
humanidade, sobre a sua diversidade e complexidade – seguindo o curso
livre do seu pensamento e das circunstâncias que o rodeiam. Nota-se a
sua formação clássica e o conhecimento das condições reais da vida
política e económica. As máximas e reflexões dos autores clássicos
vão-no ajudando na reflexão e na compreensão de si próprio e dos outros.
Sem cair no relativismo, mas compreendendo a importância da
subjetividade, Montaigne, através do ensaísmo, não assume um sistema,
mas um método, segundo o qual a verdade absoluta deixa de estar ao
alcance do homem, sendo doravante, possível tão-somente uma verdade por
aproximações. O ensaio significa exatamente a possibilidade de
considerar o sentido ético, o carácter e a dignidade como intimamente
ligados à ligação entre a singularidade e o sentido comunitário. E
Montaigne considera que o mundo inteiro está em constante movimento,
mesmo quando há permanência, que significa a suspensão momentânea do
movimento. E assim o próprio conceito de “ser” traduz-se na inconstância
e numa pluralidade de estados e comportamentos. A sucessão dos ciclos, a
falta de continuidade, as dúvidas de coerência, correspondem, assim, à
própria complexidade humana.
Agostinho de Morais
Raíz e Utopia, Centro Nacional de Cultura, 29 de agosto de 2019
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