segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Sobrevivi a agosto de 2019




Luís Pedro Nunes
Há homem | E-Revista Expresso



JOEDSON ALVES/ EPA




Trump, China, Amazónia, G7, Bolsonaro, e a avozinha que vai salvar os netos dos WC trans
E
ra uma boa ideia. Simples e até banal. Passar o agosto desligado. Sem tocar no telemóvel. Voei dez mil quilómetros e deixei-me estar. Mas então o Pardal Henriques tratou de marcar uma greve de combustíveis para o dia do regresso. O que poderia implicar que transtornos de reabastecimento para o avião que me trazia para a pátria. Tentei não pensar no assunto. Até que um dia, logo ali na primeira semana de agosto, peguei no aparelho só para ver como estava a questão. Escrevo-vos, neste crepúsculo de verão, extenuado, deprimido, exausto e com esta mensagem: o Armagedão começou. Ou então é porque só vi o mundo pelo smartphone. Já não sei.

Ainda lá para a Ásia preocupei-me com os microplásticos e com a Antártica. E aquilo ralou-me mesmo. E dei em teorizar com o facto de aquela gente viver muito mais agarrada aos telemóveis do que nós (alguns). As massas exaustas nas traseiras de camionetas ou paragens de autocarros agarrados e curvados sob o ecrã. Pensei: “Isto dá um tema de crónica”, enquanto lia no iPhone sobre se a greve em Portugal tinha sido desconvocada ou não. Nos entrementes catrapiscava sobre outras questões mundiais.
Cheguei sem grandes dramas a Portugal mas já estava a panicar: o conflito em Caxemira podia tornar-se nuclear e as tensões com o Irão estavam numa escalada, Hong Kong entrava no caos. Salvini pode ir a primeiro-ministro. O Daesh está a reaparecer no Afeganistão. Pardal Henriques dominava a ecologia mediática nacional.
Falido e dado que o calor não pedia praia, qual argonauta tentei atar-me ao poste da minha sanidade mental enquanto as minhas três ninfas tocavam flauta e harpa para que me atirasse à demência da atualidade: Trump, Bolsonaro e Boris na ilha da tuitosfera e da irracionalidade. Mergulhei no caos, claro.
A partir daqui tudo se torna muito confuso. Até porque é muito inverosímil. Bolsonaro a dizer que “fazer cocó dia sim dia não reduz a poluição ambiental”. Eu, claro, parvo, anotei. Foi a 9 de agosto. Na CNN um conselheiro de Trump diz que é preciso ajudar Boris a livrar-se do horrível bloco socialista que é a UE. A minha letra é de quem está indignado. Oh, como era inocente.
Vamos dar um salto no tempo. Escrevo-vos duas semanas depois. Já a Cimeira do G7 terminou. Sinto-me um veterano da batalha de informação. Foi declarada uma (quase) recessão mundial autoinfligida pela maior potência económica mundial via tuíte, a Amazónia é consumida pelas chamas, não porque um Presidente lhe tenha posto fogo mas porque quem tem interesses em que arda sabe que não há consequências. Mas claro que este parágrafo pode ser desmentido por mil versões, tantas outras teorias da conspiração e ainda levar uns insultos.
Um pequeno resumo: Trump quis comprar a Gronelândia, postou uma imagem da ilha com uma montagem de um horrível hotel dourado a dizer que “não iria construir um”, avançou que a primeira-ministra da Dinamarca era “nasty” (termo que usa para mulheres), voltou atrás no que tinha dito sobre controlo na venda de armas após novos massacres nos EUA — um deles nitidamente inspirado no seu discurso antiminorias (no Facebook, portugueses a residir em Portugal dizem que “Trump é o meu Presidente”). Continuou com o crescendo na guerra das tarifas com a China. Percebeu que o Natal dos americanos iria ser prejudicado. Mas aí a China contra-atacou. E colocou mais tarifas. As bolsas colapsaram. O mundo está a nitidamente entrar em recessão. Será a primeira infligida via tuíte, com uma estrutura de birra. Ah, detalhe: disse que era “O Escolhido”. Vi na Netflix um documentário sobre a influência de um ramo evangelista-pequenoalmocista em Washington. Comi doces a mais nessa noite.
A Amazónia está a arder. Bolsonaro está no poder. O Planeta levantou-se indignado. Os bolsonaritos vieram dizer que são os interesses económicos da Noruega, da França e da PAC, da Alemanha que nunca se reflorestou, que não ligamos à Sibéria ou à floresta tropical africana que até arde mais. Enviaram-me vídeos do WhatsApp, e fui ao Facebook onde isto é digladiado. E num enfoque em que se quer “roubar a Amazónia”. Uma ideia que já tinha captado a um certo nacionalismo brasileiro mauricinho que defende que a fundação do país se baseia na ideia de esbulho dos portugueses. Li também editoriais de jornais que mesmo não apoiando Bolsonaro dizem que o que a comunidade internacional está a fazer é um atentado à soberania brasileira. Li insultos a Macron. De Bolsonaro à mulher de Macron. Enquanto a Amazónia ardia nas redes sociais havia uma guerra de desinformação: uma que praticamente colocava Bolsonaro a acender o fogo outra que colocava as ONG e os governos europeus a quererem roubar o Brasil. Cansaço.
E chegou o G7. O mundo político tratou Trump como se não pudesse ser incomodado. Ou sofria consequências do bully. Boris voltou a aninhar-se no sovaco de Trump. Está confiante. Sempre confiante. Diz que não paga à UE. Mas a questão é a fronteira da Irlanda onde se pode reacender uma guerra de ódio velho. O tipo está a fazer-se de estúpido. Em Portugal mandaram-me um vídeo com uma avó a dizer que é preciso salvar os netinhos de se tornarem trans. Que estão em perigo. A ideologia do género é fogo. Não percebo se é por causa das tarifas, se é por causa da Amazónia ou por tudo isto que descrevi. Se é por isso, estou contigo, avó.

Expresso, 31 de agosto de 2019

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