José Tolentino Mendonça
Que coisas são as nuvens | E-Revista Expresso
SÓ QUEM PERMANECER COMO CRIANÇA CHEGARÁ A SENTIR-SE HERDEIRO DO GRANDE REINO DA VIDA
poeta Ruy Belo escreveu que “somos crianças feitas para grandes férias”. É uma afirmação aparentemente simples, mas que nos avizinha de uma verdade a que não acedemos sem um mergulho corajoso em nós próprios. Talvez as coisas importantes da vida sejam assim: guardam níveis múltiplos de compreensão. E a compreensão mais plena é aquela que emerge — haveremos de concluir depois — não como dado adquirido, mas como tarefa deliberada e estação em aberto. O que nos incita a uma veemente, a uma inescusável e inacabada coragem de ser, que mesmo quando vislumbrada cedo, não deixa de reclamar de nós a aprendizagem e o caminho de uma inteira vida.
No verso de Ruy Belo, o primeiro elemento de surpresa é o emprego do presente: “somos crianças”. É que há muitos anos deixámos de pensar em nós assim. Se nos interrogassem diríamos que fomos ou que éramos crianças. Da infância conservámos a memória de uma espécie de luz perdida, uma terra cada vez mais longínqua. Contudo, a infância não é uma nostálgica época que o nosso passado encerra, mas um modo de entender e de reencontrar, em cada tempo, o pulsar do presente. Penso naquilo que o designer italiano Bruno Munari explicou um dia, dizendo que uma árvore é uma semente que cresce em silêncio. Somos até ao fim uma infância que matura, que se estende, que se complexifica, que se despoja, que se configura ao essencial. Habituámo-nos apressadamente a ver na descontinuidade e na rutura o modelo do nosso percurso, e, porventura, será menos assim do que pensámos. Empolamos demasiado os segmentos, as etapas e os ciclos. A dada altura, julgámo-nos sobretudo definidos pelas funções que desempenhámos, esquecendo-nos da força estrondosa da vida sem mais. Na verdade, cabe-nos a tarefa de redescobrir a infância como, no verão, damos por nós no encalce de velhos caminhos ou procurando a mina de água escondida, aquela que goteja límpida como nenhuma outra. Mesmo quando não se vê, a infância continua lá. Naquela maravilhosa cena autobiográfica que o cineasta Ingmar Bergman filma em “Morangos Silvestres”, ele coloca o protagonista, o velho professor Isak Borg (nome que contém as iniciais de Ingmar Bergman) a reencontrar os lugares da sua infância, e a contemplá-los agora miraculosamente como se o tempo não tivesse passado. Na verdade, o tempo não passa: somos, ainda somos, o mesmo desejo de ser amados e de amar. Por isso, só quem permanecer como criança chegará a sentir-se herdeiro do grande reino da vida.
Somos até ao fim uma infância que matura, que se estende, que se complexifica, que se despoja, que se configura ao essencial
O outro elemento de surpresa no verso de Ruy Belo é trazido pela conjugação verbal que encabeça o segundo termo: “feitas para grandes férias”. Só por si, a afirmação “somos crianças” colocava-nos num espaço de indeterminação. Mas claramente não é assim. Mais do que indeterminados somos seres feitos para: o espanto, a amplidão, a delícia. Há um chamamento maior onde nos reconhecemos. Por isso, ao contrário daquilo que o tempo de férias tantas vezes parece — quando vivido como fuga, dispersão, alheamento e intermitência de nós mesmos —, ele representa um período privilegiado em que vale a pena apostar. Há um trabalho interior, uma fundamental viagem ao âmago do real que o tempo de férias possibilita. Para isso temos de aceder ao ponto “onde começa a verdadeira vida”. Marcel Proust conta-o assim: “Existem certos espíritos que podíamos comparar a doentes que uma espécie de preguiça ou de frivolidade impede de descer espontaneamente às regiões profundas de si próprio, onde começa a verdadeira vida. Só quando aí tiverem sido conduzidos é que eles são capazes de descobrir e explorar verdadeiras riquezas.” Boas férias.
Expresso, 27 de julho de 2019
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