segunda-feira, 22 de julho de 2019

Emblemas efémeros



Pedro Mexia
Fraco Consolo | E-Expresso Revista




A MELANCOLIA PRECISA DE ESPELHOS, ESPELHOS DISFORMES, INCONGRUENTES, ONDE SE MANIFESTA UMA ESPÉCIE DE COQUETTERIE DA FINITUDE



J
ean Starobinski (1920-2019) e Jean-Pierre Richard (1922-2019) eram os últimos representantes da “Escola de Genebra”, uma “crítica da consciência” a quem devemos a mais consistente alternativa ao inteligentíssimo mas árido estruturalismo. Os estruturalistas queriam-se “formalistas”; os homens de Genebra, “temáticos”. A história das ideias interessava-os tanto quanto a estilística ou a subjectividade. Starobinski, suíço filho de judeus polacos, ensinou em Basileia, em Genebra e em Baltimore. Escreveu sobre os clássicos franceses, Montaigne, Racine, Montesquieu, Rousseau, Diderot, Stendhal. E sobre psicanálise, pintura, linguística ou medicina. Um dos seus livros mais lidos, “L’Œil vivant” (1961), faz uma distinção importante entre regard e droit de regard, a diferença entre ver e discriminar. Um verdadeiro olhar crítico seria aquele que compreende tanto a “intimidade” como a “totalidade” de uma obra estética, atentamente, distanciadamente.




Charles Baudelaire
Universal History Archive / Getty images




É provável que não tenha sido apenas a formação em medicina que determinou o interesse de Starobinski pela melancolia, tema decisivo na cultura ocidental. “L’Encre de la mélancolie” (2012) é quase uma enciclopédia da bílis, da acédia e de males que tais, desde Homero à actualidade, investigação que já tinha produzido títulos como “Trois Fureurs” (1974) e “La mélancolie au miroir” (1990), de que gosto especialmente. “Três leituras de Baudelaire”, como indica o subtítulo, “La melancolie au miroir” é, em menos de cem páginas, um daqueles ensaios que desvendam a “consciência” de um escritor ao mesmo tempo que aumentam a nossa “consciência” enquanto leitores. Há duas imagens recorrentes nestas lições proferidas no Collège de France, a “melancolia ao espelho” e a “figura debruçada”. O spleen, palavra “elegante” e “irritante” que Baudelaire usava como sinónimo estrangeirado de melancolia, era uma sensação mas era antes de mais uma forma de olhar, uma atitude. Um peso, uma gravidade, um génio pensativo, um desajustamento entre o movimento interior e exterior, uma lentidão do tempo, uma incapacidade reactiva, um masoquismo, uma incompatibilidade entre vertigem do mundo e a incapacidade do sujeito. O sentimento melancólico, escreve Starobinski, é acima de tudo um olhar em busca de um objecto onde exercer o luto. Um olhar que em todo o lado encontra emblemas do efémero, cidades que mudam mais depressa do que o coração de um mortal, animais estranhos e como que exilados, bairros que se tornam alegoria, lembranças que pesam como pedregulhos (Baudelaire, “O Cisne”).

A melancolia precisa de espelhos, espelhos disformes, incongruentes, onde se manifesta uma espécie de coquetterie da finitude. Espelhos que reflectem uma paisagem interior. Como escreveu outro poeta francês, há um “poço da melancolia” onde a “água da esperança” se faz “tinta de estudo”. Sobre que espelho ou que poço se debruçam estas personagens melancólicas, de Baudelaire e de outros artistas? “Às vezes sobre o vazio, ou sobre o infinito da lonjura. Às vezes sobre signos onde o espírito encontra sinais de outro espírito: in-folios ou manuais de feitiçaria, figuras de geometria, tabelas astronómicas, equações insolúveis, ou ainda, quando a tristeza domina: ruínas, clepsidras, caveiras, monumentos derruídos — mortos antigos que indicam profeticamente a morte que há-de vir.” É, sem dúvida, uma forma de consciência histórica, mas é também um furor intemporal.
E-Expresso Revista, 20 de julho de 2019


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