José Tolentino Mendonça
Que coisa são as nuvens | E-Expresso Revista, 6.07.2019
NÃO RARO, A TENTATIVA DE DESLOCAR A ARTE PARA UM TERRITÓRIO DE OBJETIVAÇÃO FÁ-LA INCORRER NAQUELE RISCO DE DESINTEGRAÇÃO
o seu livro “Henrique de Ofterdingen”, Novalis conta uma inquietante história. A de um mineiro que desce ao fundo da mina no dia do seu casamento. Inesperadamente dá-se uma derrocada e ele morre, ficando o seu corpo sepultado lá em baixo. Muitos anos depois o corpo vem a ser descoberto, por acaso. E era incrível, pois parecia que o tempo não havia passado, como efetivamente passa sobre tudo o que é mortal. O mineiro permanecia belo e jovem como no dia do seu casamento. Decidem então retirá-lo daquelas funduras desoladas até à superfície. E acontece, nesse momento, algo de terrível: em contacto com a luz, o seu corpo desintegra-se e torna-se pó. Esta história é frequentemente recordada para descrever o destino da arte. De facto, quando se transita da obra, da experiência da obra artística, à prática discursiva que se elabora acerca dela temos de reconhecer que há uma perda. E que, não raro, a tentativa de deslocar a arte para um território de objetivação fá-la incorrer naquele risco de desintegração, que Novalis refere.
Não foi a propósito da obra de arte que me recordei desta história, mas sim a propósito da ilha da Madeira, nos primeiros de julho deste 2019, em que se comemoram os 600 anos da sua descoberta e povoamento. Falar da Madeira representa já, de alguma maneira, perdê-la, pois a sua força telúrica é (ainda hoje é) ancestral, pré-histórica ou pré-verbal, se quisermos. E tem uma intensidade que algumas palavras advertem, é verdade, mas só aquelas que aceitam descer às galerias silenciosas, a esses espaços flagrantemente uterinos, e resistir à tentação de trazer à luz aquilo que é enigma. De facto, a “perda” está já estampada no primeiro nome que lhe foi dado: Madeira. Se é verdadeira a tradição de que Camões se faz eco em “Os Lusíadas”, quando diz “passamos a grande ilha da Madeira/ que do muito arvoredo assim se chama”, percebemos que a extraordinária mata atlântica que cobre a ilha foi interpretada sobretudo em chave utilitária. Teria sido, porventura, o modo possível que se encontrou. Mas é também uma prova de como são escassos os nomes para dizer a evidência do real mais puro.
O que a Madeira é, por exemplo, ouve-se bem num disco que André Santos editou o ano passado, com um título que resume o seu programa. O disco chama-se “Mutrama”, um jogo com as abreviaturas de “Música tradicional da Madeira”. André Santos fez uma breve seleção pessoal do rico repositório do cancioneiro insular, recolhido sistematicamente, desde os inícios dos anos 80 do século passado, pelo investigador Rui Camacho e pela Associação Xarabanda. Nessas cantigas que, em alguns casos deste disco, são entoadas pelos próprios populares, retornámos ao mundo do trabalho e dos ciclos económicos que caracterizaram a história da ilha (desde a apanha do trigo à carga da cana-de-açúcar). Lidámos com a construção das sociabilidades e da identidade do lugar, com os seus desejos expressos ou omitidos, a sua sofreguidão mansa e a sua espera, os seus sofrimentos, correspondências e alegrias. Entrámos dentro da alma dos ilhéus, que, como se sabe, tem o encantamento de um melisma que o oceano embala como um sentimento chegado. Um outro aspeto surpreendente no trabalho musical de André Santos é a atenção que o músico presta aos cordofones madeirenses: a viola de arame, o rajão e a braguinha. As cantigas e os versos que as vozes murmuram são aqui importantes e revelam tanto. Mas o som desamparado destes instrumentos talvez ainda mais. Na sua estranheza recôndita, eles dão a escutar uma Madeira bela e jovem, como no dia do seu casamento.
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