terça-feira, 9 de julho de 2019

Deepfake: a realidade é real?




HÁ HOMEM
POR LUÍS PEDRO NUNES


                  GETTY IMAGES


Vídeos falsos que não se distinguem de verdadeiros. Assim será 2020
H
á uma sensação de que algo de muito mau vai acontecer. A arma está disponível, sabe-se que existe a vontade para a usar. Não é plausível que não seja disparada. E conhece-se de antemão que vai ser difícil evitar os danos causados. Falamos dos vídeos deepfake e da sua utilização na campanha para as eleições presidenciais norte-americanas de 2020. Há quem seja um pouco alarmista e diga que vão criar um ciclo de caos. Quem diga ser realista e que vão destruir a democracia e quem garanta que se está a ver tudo mal e que vão apenas provocar o efeito inesperado de deixarmos de acreditar em imagens verdadeiras. Convém começar por perceber o que é um deepfake.
E no início era o porno. Os deepfakes são vídeos manipulados via Inteligência Artificial (IA) nos quais se consegue colocar alguém a dizer algo que nunca disse. Tudo começou por ser uma mera justaposição de caras em imagens — e foi aí que atrizes famosas e celebridades ‘apareciam’ em corpos de profissionais de filmes porno. O que era mauzinho para as celebridades. Mas a tecnologia foi sendo desenvolvida e atualmente é possível pôr alguém a falar para um computador e ‘do outro lado’ sair a imagem de um político, bem como a sua voz. Isso só é possível se a ‘máquina’ tiver sido ‘ensinada’ com muita informação sobre quem está a ‘reproduzir’ (em termos de expressões ou padrões de voz). Para ser minimamente convincente, a pessoa que está a fazer de ‘duplo’ deve mimetizar os gestos típicos do imitado, bem como as expressões faciais (que são reproduzidas), de forma a que se torne mais convincente. Há tempos, o comediante Jimmy Fallon fez um excelente Trump sintetizado por IA em deepfake no seu programa televisivo. Ou um ator colocou um ‘falso’ Obama a dizer umas barbaridades. Estamos a falar de ver vídeos com o que consideramos ser os próprios Trump ou Obama a falar. E que são (quase) difíceis de dizer que são ‘falsos’. Dado que imitadores são ‘repassados’ por esse programa de computador e a sua cara adquire a forma do imitado e a voz é sintetizada. O facto de os gestos e pausas serem idênticos aos de quem se quer imitar gera um ‘produto’ convincente.
Não se pode dizer que estejamos a ser inundados com vídeos destes. O interessante é que tanto os Democratas como os Republicanos não confiam em que este tipo de ‘arma’ possa ser benéfica para qualquer uma das partes. Ambos os partidos receiam que um destes vídeos falsos, em vésperas das eleições, possa provocar uma confusão incontrolada. Vários jornais falaram com programadores russos que estão a trabalhar e a desenvolver software a pensar nas eleições de 2020, pois sabem que é aí que há dinheiro. Os investigadores de universidades americanas dizem que estão em desvantagem numa proporção de 1 para 100. Há mesmo quem seja mais radical e diga já de antemão que não se pode aceitar que dentro de pouco tempo haja vídeos falsos do Presidente a declarar guerra a países. E já há exemplos que deixam alguma incomodidade. Recentemente, no Gabão, foi um vídeo falso que levou sem sucesso a um golpe militar. Na Malásia, um vídeo deepfakeenvolveu um ministro num falso escândalo gay, entre outros casos. E há o caso da speaker Nancy Pelosi. Aqui estamos no campo da manipulação grosseira. A sua voz foi alterada de forma a que parecesse estar bêbada. Trump aproveitou para divulgar o vídeo na sua conta de Twitter. Quem é menos alarmista diz que o facto de haver milhões de pessoas a partilhar o vídeo de “Pelosi bêbada” não significa que acreditem ser verdade. Mas sim que usam a partilha como “gratificação emocional” por humilhar uma adversária. E estamos nisto.
Um dos problemas maiores com a disseminação de vídeos falsos será colocar em causa os verdadeiros. Já assim foi com as notícias. Do lado de Trump, o grande divulgador de fake news, que começou a chamar “notícias falsas” a tudo o que não lhe agradava. Assim que a paisagem videográfica estiver inundada com vídeos manipulados por IA será fácil acusar quaisquer vídeos verdadeiros e comprometedores de serem falsos. E a realidade estará cada vez mais mortinha.
E as redes sociais? Não era suposto estarem a combater as fake news? Neste caso dos deepfake voltou-se à estaca zero. Lá vimos o menino Zuckerberg dizer que o Facebook — e estamos apenas a falar de “Pelosi bêbada” — não é um órgão de comunicação social, logo não é obrigado a ter em conta se aquilo que divulga é verdadeiro ou falso. “É apenas uma rede social.” Para o testarem fizeram um deepfake com o patrão global das redes sociais a dizer que já controlava o mundo e vendia dados. Teve de manter o vídeo e não o apagar.
Não se pode dizer que dê para estar otimista. Fala-se na necessidade de haver “um mecanismo de validação para vídeos reais”. Mas num mundo que baseia a sua vivência em pequenos excertos de telemóveis e é cada vez mais visual, a morte do real video­gráfico leva-nos para uma democracia entrincheirada em verdades falsificadas. Dizem que atingimos uma “apatia do real”: o momento em que ninguém se importa com o que é verdade ou falso. Aceito apenas aquilo que favorece as minhas convicções. Principalmente se agora posso ter qualquer imagem de alguma pessoa a corroborar.
A ser assim, o futuro da democracia terá duas versões. Uma que acaba bem e outra que acaba mal. Com vídeo a corroborar ambas.
E-Expresso Revista, 6 de julho de 2019


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