Cristiano Ronaldo
Por Manuel Alegre
“Que cada um faça o que tem a fazer com convicção moral"
Sempre que vejo Cristiano Ronaldo lembro-me de um discurso de Felipe González antes da sua primeira vitória eleitoral: “Que cada um faça o que tem a fazer com convicção moral; que o romancista escreva a novela com convicção moral; que o pedreiro trabalhe a pedra com convicção moral; que o cirurgião opere com convicção moral.” E por aí fora. Talvez seja esse o segredo de Cristiano. O miúdo que veio aos 11 anos para Lisboa e chorava com saudades da mãe, foi dia a dia, com a ajuda de Aurélio Pereira, fortalecendo o espírito. Digo assim, porque mais do que o talento (que é muito), mais do que os músculos, a arte da finta, a velocidade e a potência do remate, a força de Cristiano está na cabeça, na confiança em si mesmo, na convicção moral com que treina e joga. Antes das Bolas de Ouro, ele teve de vencer-se muitas vezes. Nos treinos de madrugada, em dias cinzentos e chuvosos, nas noites de insónia e solidão, ele dava um pontapé no desalento, na rotina, no fatalismo, na ideia tão portuguesa de que não é possível e não vale a pena. Para ele está sempre tudo por fazer, há sempre mais um impossível a alcançar. Falta-lhe sempre mais um golo, mais um título, mais uma bola de ouro. Diz que já não tem nada a provar. Falso. Cristiano está sempre a provar que ainda pode ir mais além. Por isso é diferente.
Procurei e procuro ver todos os seus jogos. No Manchester, no Real Madrid, na Juventus, na Selecção. Vi-o marcar 3 golos à Suécia, mais tarde outros 3 à Espanha, recentemente à Suíça. Vi-o levar muitas vezes o Real Madrid às costas, marcar 3 e às vezes 4 golos em vários campos de Espanha. Vi o fantástico golo contra a Juventus, que os próprios adeptos italianos aplaudiram. Foi nesse dia que o conquistaram, porque há um miúdo em Cristiano que precisa de palmas, carinho, e de que gostem dele. E vi-o eliminar o Atlético de Madrid em Turim, fazendo uma vez mais o inesperado: 3 golos que eliminaram os madrilenos.
Tivemos grandes jogadores. Mas nunca tivemos ninguém como Ronaldo. Ele tem passado a vida a dobrar os cabos e a levar-nos às ilhas imaginárias nunca antes vistas. Tem-nos sobretudo ajudado a descobrir, como dizia Torga, as Índias de dentro, que são as mais difíceis. Cristiano é muito mais do que um grande jogador de futebol, um daqueles, raríssimos, em que, como em certos artistas, o talento e a técnica se transformaram numa segunda natureza. Inscreveu o nome do país no seu próprio nome. E anda a escrevê-lo por todos os continentes.
Cada golo marcado foi muitas vezes concebido antes, dentro de si, na sua cabeça, na sua auto confiança, na sua visão otimista sobre si mesmo e sobre o jogo da vida. Ele liberta-nos, pelo menos a mim liberta-me, de velhos fantasmas onde tantas vezes nos perdemos. Com Cristiano não há jogos impossíveis de ganhar nem batalhas irremediavelmente perdidas. Nem negro fado fatal. Ele entra em campo para ganhar. Não é pecado. Marca um golo, salta, bate no peito e diz: “Eu estou aqui.” Significa que vai vencer. E nós com ele.
É claro que ele também abana o “país quietinho”, criticado por Teixeira de Pascoaes, o país cinzento, o país da inveja, última palavra de Os Lusíadas. Camões sabia porquê. À sua maneira, Ronaldo também sabe. Cada sua vitória é uma derrota da mesquinhez, um pontapé ou uma cabeçada na apagada e vil tristeza. A sua epopeia é escrita no campo, em cada jogo, pela sua alegria, pelo seu talento, mas, sobretudo, pela confiança que o inspira e nos inspira. Cristiano liberta-se e liberta-nos. Devemos-lhe isso. E não tem preço.
E - Expresso Revista, 29 de junho de 2019
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