Crónica de António Lobo Antunes
O tempo apagará para sempre o que fomos até não termos sido nada. E as palavras que deixarei são provisórias como todas as palavras que se pronunciaram no mundo. Ná havendo novidade, dizia o velhote sem pernas. Mas havendo ou não havendo novidade será assim. A sua cadeira de rodas desaparecerá também. Mesmo o teu nome, António Lobo Antunes, não terá sequer a sombra de uma sombra
Era um camponês alentejano, já idoso, seja o que for que isso signifique, com uma diabetes muito grave, condenado a uma cadeira de rodas porque lhe amputaram as pernas. Os resultados das análises eram uma miséria mas continuava a não tomar a medicação, a beber, a comer
o que não devia quando tinha dinheiro para comer. Morava num sítio perdido onde ninguém passava. A sua única frase à despedida foi
– Ná havendo novidade a gente vê-se daqui a dez anos
e lembro-me tantas vezes desta frase. Ná havendo novidade.
Ná havendo novidade o meu futuro
é muito claro. Faltam-me quatro livros, contando este em que estou
a trabalhar agora. Ná havendo novidade o último estará pronto em 2022 e não torno a escrever porque a obra ficará finalmente redonda e o círculo definitivamente fechado. Não consinto que mais nada meu seja publicado, rascunhos, planos, esboços, falsas partidas, seja o que for. Proíbo que desrespeitem a minha vontade. Proíbo que me traiam. Nem uma palavra mais. Claro que também não farei estas crónicas a partir do momento da saída desse livro de 2022. Depois disso, e ná havendo novidade, irei ler esses textinhos. Se achar que têm alguma qualidade reúno-os num livro com o título Crónicas. Publica-se esse volume e acabou-se.
Como dizia Newton não sei o que o futuro pensará de mim, mas sei o que eu pensarei dele, como sei o que penso acerca do que fiz. Simplesmente as pessoas não têm direito ao que eu penso. Têm direito ao que eu fiz e é um pau. Digam o que lhes der na gana: é igual ao litro. As opiniões flutuarão com os tempos, inevitavelmente, e as águas deixarão de se agitar a pouco e pouco quando eu for apenas um nome, uns retratos, umas lembranças vagas. Depois as lembranças desaparecerão como desaparecerão os retratos. Fica o nome e a obra. Depois... Dos dez grandes dramaturgos de que Aristóteles falou nem uma peça resta. Nem uma linha. Temos Eurípides, Ésquilo, Sófocles, que Aristóteles omitiu: parece que dava mais importância aos outros, não há certeza de espécie alguma a esse respeito. De Safo sobrevivem meia dúzia
de palavras. A única vez que Cristo escreveu fê-lo com
o dedo na terra, ninguém conhece o que rabiscou. Tudo o que fizemos não passou disso: escrevemos com o dedo na terra e nem a mulher adúltera, a única pessoa que estava com Ele, o soube. Como o não soube quem declarou que ele escreveu com o dedo na terra. Mas teria escrito de facto ou esboçado apenas uns riscos?
Ao fim e ao cabo esboçámos apenas uns riscos. Mesmo que não os tenhamos apagado com a mão
o tempo encarregar-se-á disso por nós. Vaidade das vaidades, garante
o Eclesiastes, tudo é vaidade: o tempo apagará para sempre o que fomos até não termos sido nada.
E as palavras que deixarei são provisórias como todas as palavras que se pronunciaram no mundo. Ná havendo novidade, dizia o velhote sem pernas. Mas havendo ou não havendo novidade será assim. A sua cadeira de rodas desaparecerá também. Mesmo o teu nome, António Lobo Antunes, não terá sequer a sombra de uma sombra. Ao escrever isto lembrei-me de um poema babilónico com mais de dez mil anos. Ficou o início
Ó casa de bambu escuta
ó casa de bambu compreende
e isto comove-me até às lágrimas. Como me comove um poema de Bachô
(estou a aportuguesar-lhe o nome)
feito no século dezasseis:
Os quimonos secam ao sol.
Ai as mangas pequenas
Da criança morta.
Ontem não te vi em Babilónia diz a inscrição numa pedra que aproveitei para um livro. De facto não vimos ninguém em Babilónia nem sequer a nós mesmos. Vaidade das vaidades, eu preocupado com a minha pobre obra. Pela janela aberta chegam os gritos dos presos no recreio da cadeia lá em baixo. Parecem alegres, riem, cantam. Ná havendo novidade daqui a quarenta anos estão cá fora a aliviarem os bolsos do pagode. Quanto
a mim, ná havendo novidade, daqui a dez estarei com
o amigo alentejano, sem pernas, a comermos à colher um pacotão de açúcar.
(Crónica publicada na VISÃO 1316 de 24 de maio)
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