domingo, 17 de junho de 2018

Do que nos atinge



Encontro, sem esperar, a escritora brasileira Nélida Piñon. Naquele desenho inesperadamente confidencial que é muitas vezes o das rápidas conversas entre estranhos, ela diz-me: “Sabe uma coisa? Não há dia nenhum em que a vida não me atinja.” Aproximam-se, entretanto, outras pessoas e isso muda a direção da conversa. Eu próprio tenho de fugir para outro lugar. Despeço-me à pressa. Mas aquela frase já não me larga: “Não há dia nenhum em que a vida não me atinja.” À medida que a repito, nas horas seguintes, nos dias seguintes, fico a pensar que a sua força expressiva repousa talvez no verbo guardado sabiamente para o final, como o rodar de um gatilho que sobressalta. Concentro-me aí e dou por mim a estender os sentidos possíveis. 

"Atingir" no sentido de alcançar, como uma pedra que vence a distância que a separa de um alvo. Nesse caso, Nélida pretendia dizer o quê? Que estamos distantes da vida, ou quem sabe da verdadeira vida, e vivemos por alguma razão desligados dela ou daquilo que ela representa, e então essa existência maiúscula, semelhante a uma irresistível força omitida, deslocar-se-ia até nós para nos alcançar? Cada um de nós seria, assim, o alvo da vida, dessa corrente que se declina nas nossas formas singulares, mas que também se excede e transcende. E isto, num exercício pacientemente repetido, pois "não há dia nenhum" em que tal não aconteça. O mistério estaria, porém, em perceber porquê: porque é que a vida não desiste de tentar a supressão do intervalo que nos distancia. 

Mas outro significado do verbo "atingir" é também o do encontro violento, uma espécie de embatem de colisão que não nos deixa os mesmos, que nos dilacera de um modo flagrante, destinado a persistir depois. “Não há dia nenhum em que a vida não me atinja.” Neste caso a vida seria um choque, um estremecimento, uma revolta que se desprende, um contacto que nos estala. Provocaria em nós a ferida. O alarme. O assombro. 

Há, na realidade, mil maneiras de a vida nos atingir. Falando com um amigo que não via há tempos, apercebo-me que ele trocou entretanto, o automóvel por uma mota. Interesso-me por isso. Pergunto se ele se habituou depressa, se não sentiu medo na passagem da cápsula confortável do carro para essa exposição do corpo à velocidade. Diz-me que sim, que esse medo nunca o deixou e que um sinal é chegar ao fim do dia com os pulsos doridos da tensão com que conduz. Mas que mesmo assim não retrocederia. E uma das razões mais fortes é a maneira como agora o atinge o vento. Recordei-me do que ouvi a Nélida Piñon. "Quando se anda de moto - contou este amigo - percebe-se que o vento não tem propriamente uma voz, que ele não nos diz nada, nem se parece com nada que conheçamos. Tenho aprendido a amar aquele barulho por si mesmo, aquela muralha de ruído puro sem mais, que umas vezes me dá a impressão que rasgo e outras vezes tenho a certeza que me rasga a mim. Por incrível que pareça esse encontro com o vento tornou-se importante, desejado... Encontro aí uma forma de consolação. Saio sempre como que fortalecido."

Visitei no verão passado o campo de concentração de Westerbork, no norte da Holanda, onde esteve prisioneira Etty Hillesum e por onde passou também a filósofa Edith Stein. E uma tarde de julho deixei-me ficar deitado sobre a erva a gravar o vento que atravessava as árvores e provocava um abrupto vórtice nas folhas. Acho que não fiz mais nada por muitas horas senão isso: recolher o som daquele vento. E quando me veio ao pensamento um verso de Cecília Meireles, "tudo é menos que o vento", desatei a chorar como um miúdo.

José Tolentino Mendonça, "Que coisa são as nuvens - Do que nos atinge", in E-Expresso-Revista, 9 de junho de 2018, p. 90


Holanda, Campo de Concentração Westerbork
Foto: http://segundaguerra.net/westerborkpad-a-trilha-entre-amsterda-e-o-campo-westerbork-seguindo-os-passos-do-holocausto/


Sem comentários: