quarta-feira, 27 de junho de 2018

Diálogos interartísticos




Fado Medo, poema de Reinaldo Ferreira e Alain Oulman


O medo

Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo!
Mas se insistirem, desdigo
O medo mora comigo
Mas só o medo, mas só o medo!


E cedo, porque me embala
Num vaivém de solidão
É com silêncio que fala
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão


Que farei quando, deitado
Fitando o espaço vazio
Grita no espaço fitado
Que está dormindo a meu lado
Lázaro e frio?


Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim

Reinaldo Ferreira



Amália por Júlio Resende / "Medo" - Dueto com Amália Rodrigues



Pedi ao Gonçalo M. Tavares para que escrevesse a partir da inspiração que cada tema [musical meu] lhe despertasse. Que neste disco cada música pudesse ter uma nova letra, mesmo que não fosse para ser cantada. Tive a honra de ele o aceitar. Habitar o papel de coisas belas, eis a sua arte. Deixo-vos o magnifico texto do "Medo" e toda a essência do fado - o fado por trás, em cima, por baixo, à frente de cada segundo da canção que o tempo nos canta - e que ali leio. E exprimo mais uma vez a minha gratidão.


 


Medo
"O medo é uma forma de endireitares as costas. Ficas homem subitamente. Mulher subitamente. O medo é uma forma de endireitares as costas.
O medo é uma forma de fazer homens fortes, mulheres fortes.
Nada perturba mais o crescimento do que não ter medo: cresce com medo, menina; cresce com medo, menino!
Só cresço porque tenho medo, só me torno forte porque tenho medo, só me torno mau porque tive medo, só mato porque tive medo, só serei um homem porque tive medo, uma mulher porque tive medo. Assim se ensina na boa cidade, na velha cidade e no velho campo.
Mas não é o medo do que está à tua volta - porque isso pode matar ou não. Medo, sim, e muito, do que que está sentado em pleno meio de ti. Porque isso, sem dúvida, mata, acabará por te matar, não pode deixar de te matar. E está sentado, esse medo, bem sentado, em pleno meio de ti.
E não o tentes expulsar, não cometas esse erro: ele não pode sair de ti sem a tua companhia."
- Gonçalo M. Tavares

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