terça-feira, 12 de junho de 2018

João Pinto Coelho: discurso na cerimónia de entrega do Prémio Leya 2017




Em 27 de outubro de 2016, JP Coelho esteve na nossa escola a convite da Biblioteca Escolar




As palavras de João Pinto Coelho, na cerimónia de entrega do Prémio Leya, pelo romance Os Loucos da Rua Mazur, que decorreu no passado dia 3 de junho, na Feira do Livro de Lisboa


Não consigo deixar de olhar para este momento como o fim de um ciclo. Não falo dos últimos meses, mas dos três anos que passaram desde que Perguntem a Sarah Gross saiu para as livrarias. Tudo somado, são dois livros e duas linhas de Equador com eles debaixo do braço. Ainda hoje me parece que há qualquer coisa que não bate certo. Este momento e estas imagens, por exemplo. Mas ainda bem que tudo aconteceu, ainda bem que vos vi ou senti por lá.

E, a pedido de alguns, repito aqui o disse então:

"Excelentíssimo Senhor Ministro da Cultura; Excelentíssimo Isaías Gomes Teixeira; Excelentíssimo, Manuel Alegre; Excelentíssimo João Amaral,

Começo por agradecer as vossas palavras, bem como a presença dos meus amigos e familiares e a de todos os que se juntam a nós neste final de tarde. Agradeço igualmente aos elementos do júri do prémio Leya, ao seu presidente, Manuel Alegre, que já referi, mas também a José Castello, Rita Chaves, Lourenço do Rosário, Nuno Júdice - aqui presente -, Pepetela e José Seabra Pereira.

Há cerca de seis anos, acompanhei um grupo de dezassete jovens portugueses a uma pequena cidade do sul da Polónia chamada Oswiécim, a mesma que, poucos dias após o início da 2.ª Guerra Mundial, a Alemanha de Adolf Hiler rebatizou como Auschwitz. Durante quatro dias, e já depois de termos visitado os antigos campos de Auschwitz 1 e Birkenau, calcorreámos a cidade, falámos com quem passava e ouvimos as histórias de muitos que ali viviam, havia mais de setenta anos. Conhecemos ainda as ruas, os cemitérios, a antiga praça do mercado e, em cada beco, em cada ruína, em cada ombreira de porta, procurámos pelos vestígios de uma presença judaica há tanto desaparecida. Na verdade, cada um daqueles jovens estava ali com um propósito: escrever um diário, na primeira pessoa, mas como se vivesse ali mesmo, em Oswiécim, em Auschwitz, durante o período da ocupação alemã. Para tal, deveriam construir o seu cenário, um retrato da cidade a preto e branco, tal como era nessa altura: com as pessoas de então, os hábitos de então, as instituições, a toponímia e até as pequenas coisas que a História deixa ficar para trás. Assim que regressámos, os jovens continuaram os seus diários e eu escrevi a primeira linha de ficção desde os tempos da escola primária, sem imaginar que os parágrafos seguintes iriam mudar a minha vida para sempre. Foi assim que nasceu o meu primeiro romance, Perguntem a Sarah Gross, foi assim que cheguei até aqui. Vencer o prémio Leya, mesmo na recarga, até pela minha condição de escritor inicial, constitui, como percebem, um aval de confiança inestimável.

Na sinopse de Os Loucos da Rua Mazur diz-se, a dada altura, que a escrita de um romance pode tornar-se um ajuste de contas com o passado. E é exatamente por aí que pretendo prosseguir, uma vez que também eu tenho contas a acertar com o passado mais recente. Dirijo-me àqueles que, nos últimos tempos, me têm acompanhado de perto com os seus gestos afáveis. Não podendo falar de todos, pior seria se não me referisse ao João de Melo, que, sendo grande entre os maiores, se permite olhar para baixo, agarrar-te pelos braços, e elevar-te para um lugar que nunca te atreveste a ambicionar.

O Manuel Alberto Valente, a quem nunca agradeci devidamente o aconchego nem as palavras que um dia publicou por causa da Sarah Gross. Foram as primeiras, ainda hoje e por isso, as mais marcantes.

Há ainda a Isabel Rio Novo, o Paulo Paulo M. Morais e o Rodrigo Guedes de Carvalho, escritores admiráveis, pela generosidade, elegância e, desculpem-me, a falta de pachorra para as invejas de aldeia.

Mas também o Vamberto Freitas e o Joaquim Gonçalves, esse livreiro de Sines de quem tanto tomei para construir o maior herói da rua Mazur.

Gostaria ainda de guardar um lugar para os que há três anos multiplicam as palavras que escrevo por todos aqueles que as leem. Falo da Leya, a minha casa editorial, e da aposta destemida nos meus escritos: os administradores ao darem-lhes crédito, os designers ao darem-lhes rosto, os comerciais ao darem-lhes montra, os delegados ao darem-me a sua paciência, de norte a sul do país, por dezenas de escolas visitadas. E, porque este discurso também tinha de falar de ternura, há os outros, os de todos os dias, as minhas traves, a minha ordem, o meu sossego: a Diana Monsanto, que é gestora de marca, o Rui Breda, que é diretor de comunicação, e a Madalena G. Escourido, que é tudo.

Depois, que é um “antes”, a Maria do Rosário Pedreira. Por vezes, encontro nas margens dos originais que lhe envio justíssimos puxões de orelhas para que não me repita. Mas agora, aqui, fora do alcance da sua caneta vermelha, tenho de lhe dizer mais uma vez que continuo a encontrar a minha perseverança na sua persistência, e que a sua ambição de editora é a minha ousadia de escritor.

O Nuno Camarneiro, vencedor de uma edição anterior do Prémio Leya, disse um dia que, pela mão da Rosário, um autor aceita ir para qualquer sítio, até para o Inferno. E se calhar, foi por isso que arrisquei essa visita. Em os Loucos da Rua Mazur, mergulho num poço de chamas, uma massa de corpos retorcidos onde há choro e ranger de dentes, sem nunca achar um demónio, apenas homens. E é deles que falo neste livro. Homens e mulheres mais os seus rostos, as suas histórias, e um mal sem restrições destravado sobre alguém. Ali, em pleno desastre humano, estão Yankel e Shionka; ele não vê, ela não fala, mas o que os liga pode ser o Bem na sua expressão mais límpida, a provar que o amor se possibilita para além das circunstâncias, até num solo de iniquidade, mesmo destituído de imagens ou carente de palavras.

E diabos nos levem se isso não é um sinal de esperança.

Mas mal da obra que se esgota em quem a escreve. Um livro tem tantos autores quantos aqueles que o leem, e, talvez por isso, passei os últimos meses a conhecer versões melhoradas do romance que escrevi. No entanto, infelizmente, nem todas as leituras nos devolvem a mesma honestidade.

Pior do que um livro que não vê a luz do dia, pior que qualquer noite de cristal, é o livro proscrito por gritar aquilo que é justo, por dizer que aconteceu, por lembrar que pode voltar a acontecer. Como disse Piotr Cywinski, «o amanhã está enraizado na memória, e, quando nos esquecemos, não estamos a destruir uma imagem do passado, mas a forma tangível do nosso futuro."

Ora quando o governo de um país, um estado membro da União Europeia, decide institucionalizar a verdade histórica, resvala sem remédio para o absurdo - até porque escrever a história oficial de uma nação não gera mais do que um instrumento perverso de poder. Daí a uma lei que criminaliza qualquer um - nacional ou estrangeiro - que proponha versões divergentes, o passo é curto e previsível. Salvaguardar dessa lei infame os artistas e os investigadores é, na verdade, um desplante, uma discriminação tola e odiosa.

E porque não aceito ser inimputável, muito menos a coberto dos meus livros, reafirmo hoje, e perante cada um de vós:

Neste romance, a cidade que nunca é nomeada, a medalha perdida na floresta, é mesmo um círculo imperfeito e tem um nome maldito: Jedwabne;

o manicómio que arde é, afinal, o celeiro de Bronisław Śleszyński;

as cinzas que esvoaçam são judias;

as culpas, essas, são gentias e são polacas.

Escrito o livro, há poucos meses regressei à Polónia, a Jedwabne. A cidade é como sempre a imaginei: há uma praça, há árvores e corvos que as vergam às dezenas, há pessoas a olhar por detrás das cortinas. Mas também há vergonha e há rancor e negação.

Mas há mais: há Kamil.

Kamil Mrozowicz é um miúdo de vinte e poucos anos. Numa certa tarde de inverno, encontrámo-nos à porta de uma casa abandonada de Jedwabne. Nas suas mãos, carregava uma pilha de livros. O primeiro era este, era o meu. Por baixo, havia outros, histórias de verdade sobre a guerra, sobre judeus e cristãos, sobre o bem e sobre o mal e a tal zona cinzenta de que fala Primo Levi. Era ali, naquele lugar desconsolado, que Kamil queria erguer a sua biblioteca. Já lá dentro, dispôs os livros ao seu jeito e, durante uma hora, falou-nos de um sonho enfim cumprido. Foi então que eles apareceram. Apareceram para acusar, para ameaçar e para destruir. Mas não houve resistência, e Kamil saiu como entrou, com os mesmos livros nas mãos, com a mesma consciência. Nunca o voltei a ver. Sei apenas que a sua família foi confrontada na cidade, sei que o acusou por isso, só não sei o que morreu naquela tarde.

Mas também sei outra coisa: é que, durante uma hora, Kamil teve a sua biblioteca.

E diabos nos levem se isso não é um sinal de esperança.

É por isso que hoje, ao olhar para baixo, para esta imensa esplanada, para todas estas cores e para todas estas vozes - as vozes dos livros e daqueles que os escrevem, que os leem, que os vendem, que os editam, promovem e criticam -, mais do que um festival de livros, eu vejo uma celebração do pensamento livre. E num território de ideias soberanas, confiemos, há sempre alguém que se ergue,

há sempre alguém que diz NÃO.

Muito obrigado a todos."



Feira do Livro, Lisboa, 3 de junho de 2018



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