No regresso às aulas...
"A aldeia global tornou-nos apenas próximos: não nos apresentou uns aos outros. Passamos a partilhar uma quantidade colossal de informações, mas continuamos perfeitos estranhos. Quanto muito tem crescido o voyeurismo que sobrevoa a existência alheia e nos dispersa da nossa. Às nossas sociedades hipertecnológicas faltam os protocolos de encontro que, por exemplo, integravam com a maior naturalidade o quotidiano das sociedades primitivas. Entre os povos do deserto, quando os desconhecidos eram aceites como hóspedes, seguia-se este ritual e aproximação: «Considera-te bem-vindo! Recebe as minhas saudações. Como prosseguem os teus dias? Como vão os filhos de Adão? E a tua família? E a tua tenda? E a tua mãe? E tu, como corre a viagem que estás a realizar?»
Percebe-se que acolher implicava escutar o outro em profundidade. É isso que está em jogo num genuíno encontro. As fórmulas podem ser mais longas ou mais breves, mas o fundamental é que um espírito de cerimónia persista, pois ele humaniza as nossas trajetórias. Na Bíblia hebraica encontramos o «Quem és? De onde vens? Para onde vais?» trocado, com cordial curiosidade, com os viandantes. Os gregos e romanos, por seu lado, vulgarizaram o aperto de mão, como se pode ver nos monumentos figurativos sobretudo nas estelas funerárias. O beijo é praticamente uma importação do Oriente. Mas tanto gregos como romanos mantinham também o hábito de favorecer os seus interlocutores com felizes augúrios, herança que apenas em parte conservamos: o grego caíre, 'alegra-te', ou errwso, 'sê em toda a tua força'; o latim Ave, 'Deus te salve!', ou Vale, 'que tenhas saúde!'. As formas de tratamento tornaram-se tão sincopadas a Ocidente que perderam a sua força expressiva. A maior parte das vezes são hoje repetidas de maneira automática. Por isso sabe bem recordar outras possibilidades: como entre os etíopes, onde se recorre a um termo que significa 'Vejo-te' ou entre os ameríndios, que usam uma expressão que diz qualquer coisa como 'Recebo agora o teu cheiro'. O protocolo de encontro tem ainda uma plasticidade visceral que demonstra a centralidade que ocupa nessas práticas sociais. Facto que soará estranhíssimo numa época como a nossa em que nos tornamos cosmopolitas, de uma hora para outra, só porque esbarramos com mais estranhos na rua, sem aumentar o número de vezes que dizemos 'bom dia'.
As fórmulas mais belas de saudação que conheço são as trocadas entre os padres do deserto. Aqueles anacoretas, exploradores de silêncios abissais, tinham como ideal tornarem-se irreversivelmente estranhos ao modo comum de atravessar a terra, e viver exatamente 'como um homem que não existe'. Mas eles, que comunicavam por monossílabos e gestos para não ferir a ciência sagrada do silêncio, nas ocasições em que se encontravam faziam-no com solenidade máxima: «Ave, guardião da manhã, montanha inacessível», «Ave, coluna que sustentas com a tua solidão o inteiro universo».
Porém, não nos equivoquemos. As fórmulas com que o verbo saudar se expressa são, afinal, a parte mais ínfima da equação. O que é verdadeiramente decisivo para ativá-lo é a passagem do 'esse' e do 'ele' ao 'tu', que o filósofo Martin Buber explica assim: «Se encarar um ser humano como o meu 'tu', se o introduzir na relação fundamental 'eu-tu', ele deixa de ser uma coisa entre coisas... Não me perco a analisar e a pôr à prova o homem a quem digo tu. Entro em relação com ele, na sacrossanta palavra fundamental... Aqui se encontra o berço da vida verdadeira.»"
José Tolentino Mendonça, Que coisa são as nuvens - O verbo saudar, E-Revista Expresso, 19 de agosto de 2017, p. 92
Vamo-nos 'apresentar uns aos outros'?
11 de setembro de 2017.
A Escola Secundária Camilo Castelo assinala neste dia o protocolo de (re)encontro dos professores que vão lecionar na Camilo no ano letivo que agora se inicia.
Que a celebração deste ritual de proximidade seja sinónino de um encontro genuíno, de acolhimento mútuo e de escuta do outro em profundidade, são os votos da Biblioteca CCB!
Vale!
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