"É célebre o modo como em A Arte do Romance, Milan Kundera remonta não só a Cervantes, mas também à emergência da modernidade para explicar o nascimento da singularíssima ferramenta de conhecimento humano que é o romance. Diz ele: «Quando Deus abandonava lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e a sua ordem de valores, separado o bem do mal e dado um sentido a todas as coisas, Dom Quixote saiu de casa e já não estava em condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do juiz supremo, apareceu subitamente com uma terrível ambiguidade: a única verdade divina decompôs-se em centenas de verdades relativas que os homens partilharam entre si. Assim, o mundo dos tempos modernos nasceu e o romance, na sua imagem e modelo, nasceu com ele.» A primeira aceção do verbo romancear (escrever romances) coincidiria assim com o eclipse de Deus da cena do mundo e com o estilhaçar do absoluto numa infinidade de verdades relativas, que passaram a ser o acesso possível à verdade. Porém, quer a secularização quer o romance ganham em ser compreendidos fora de uma lógica meramente antagonística em relação ao fenómeno religioso.
Muito recomendável é a obra monumental de Charles Taylor, A era secular (há uma tradução disponível nas Edições Piaget), onde o filósofo canadiano mostra que o caminho mais adequado para compreender a secularização não é de todo a transição de uma cultura crente para uma secular. A secularização não significa o declínio da religião, mas sim uma mudança na forma dos indivíduos e das sociedades se relacionarem com ela - facto que o romance espelha.
James Wood, um dos mais originais críticos literários contemporâneos (a Quetzal tem dois títulos publicados), explica, por exemplo, que ao lermos um romance podemos verificar uma alternância entre a modalidade secular e a religiosa, naquilo que se poderia designar por 'facto' e 'forma'. O impulso secular do romance procura expandir a vida, amplia as suas cenas e pormenores, esforça-se por atribuir aos acontecimentos relatados o ritmo, a minúcia e o turbilhão do real. Quando o romance se rege pela modalidade secular, deseja que as suas personagens vivam para sempre, não admite que possam morrer. Essa é na estratégia romanesca 'a forma'. Mas a modalidade eterna ou religiosa do romance recorda-nos também que a vida é circunscrita pela morte e nisso partilha a visão sagrada da vida como vida já escrita e chamada a ser, no aberto, uma simples passagem. Isto constitui 'o facto'. É nesse sentido que Wood declara que, em vez de documentar o crepúsculo de Deus, o romance mantém a promessa feita no Salmo 121: «O Senhor te protegerá, quando sais e quando entras.»
O romance dá-nos três coisas. Antes de tudo, uma visão complexa e integral da vida. Quando olhamos para o mundo através do romance ele nunca é plano nem unívoco: junta empírico e imaginário, visível e invisivel, passado e futuro. Depois, o romance oferece um conhecimento concreto, não conceptual. A ótica do romance não demonstra: ela mostra, num esforço de desapropriação ideológica por fideliddae à existência em si. Por exemplo, não é a moral de Tolstoi que conta, mas sim Anna Karenina vivendo. Por fim, o romance é um instrumento de precisão como existem poucos. Só o romance parece estar à altura da singularidade, liberdade, assombro e tragicidade da vida; só ele consegue relatar o maiúsculo e o minúsculo, o sublime e o infame, o enlace e a solidão. Quem o afirma, curiosamente, já não é o crítico literário, mas o teólogo Elmar Salmann que trata o romance como «o pequeno sacramento da modernidade».
José Tolentino Mendonça, Que coisa são as nuvens - O verbo romancear, E-Revista Expresso, 2 de setembro de 2017, p. 92
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