sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Todo o Mundo e Ninguém




Extrato do Auto da Lusitânia (1531), de Gil Vicente


As personagens "Todo o Mundo " e "Ninguèm"



Gil Vicente deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às personagens principais desta cena. Acompanham-nas Belzebu, o diabo, e Dinato, o companheiro, que escutam a conversa daqueles e anotam o que dizem. 

Com estas duas personagens, o dramaturgo pretendeu fazer humor, criticando, dando corpo à velha máxina ridendo castigat mores (a rir se castigam os costumes): caracteriza o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (ele é Todo o mundo), e atribui ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.




Ninguém:
Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.

Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?

Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.

Ninguém:
Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.

Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.

Dinato:
Que escreverei, companheiro?

Belzebu:
Que ninguém busca consciência.
e todo o mundo dinheiro.

Ninguém:
E agora que buscas lá?

Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.

Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.

Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra todo o mundo
e ninguém busca virtude.

Ninguém:
Buscas outro mor bem qu'esse?

Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.

Ninguém:
E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.

Belzebu:
Escreve mais.

Dinato:
Que tens sabido?

Belzebu:
Que quer em extremo grado
todo o mundo ser louvado,
e ninguém ser repreendido.

Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?

Todo o Mundo:
Busco a vida a quem ma dê.

Ninguém:
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.

Belzebu:
Escreve lá outra sorte.

Dinato:
Que sorte?

Belzebu:
Muito garrida:
Todo o mundo busca a vida
e ninguém conhece a morte.

Todo o Mundo:
E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.

Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.

Belzebu:
Escreve com muito aviso.

Dinato:
Que escreverei?

Belzebu:
Escreve
que todo o mundo quer paraíso
e ninguém paga o que deve.

Todo o Mundo:
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.

Ninguém:
Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.

Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.

Dinato:
Quê?

Belzebu:
Que todo o mundo é mentiroso,
E ninguém diz a verdade.

Ninguém:
Que mais buscas?

Todo o Mundo:
Lisonjear.

Ninguém:
Eu sou todo desengano.

Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.

Dinato:
Que me mandas assentar?

Belzebu:
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o mundo é lisonjeiro,
e ninguém desenganado.

Auto da Lusitânia, de Gil Vicente (extrato)

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