domingo, 1 de outubro de 2017

Quando a velhice chegar, aceita-a, ama-a



1 de outubro | Dia Internacional das Pessoas Idosas


"Quando a velhice chegar, aceita-a, ama-a. Ela é abundante em prazeres se souberes amá-la. Os anos que vão gradualmente declinando estão entre os mais doces da vida de um homem. Mesmo quando tenhas alcançado o limite extremo dos anos, estes ainda reservam prazeres".- Séneca





HÁ UM TEMPO

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ...
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares ...

É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos...


Fernando Pessoa (1888-1935)








ELOGIO DA SOMBRA

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

Jorge Luis Borges (1899-1986)







NUNCA ENVELHECERÁS

A tua cabeleira 
é já grisalha ou mesmo branca? 
Para mim é toda loira 
e circundada de estrelas. 
Sobre ela 
o tempo não poisou 
o inverno dos anos 
que se escoam maldosos 
insinuando rugas, fios brancos... 

Ao teu corpo colou-se 
o vestido de seda, 
como segunda pele; 
entre os seios pequenos 
viceja perene 
um raminho de cravos... 

Pétalas esguias 
emolduram-te os dedos... 
E revoadas de aves 
traçam ao teu redor 
volutas de primavera. 

Nunca envelhecerás na minha lembrança!... 

Saúl Dias (pseudónimo de Júlio Maria dos Reis Pereira; 1902-1983)







SOLIDÃO

Solidão:
ouvir passos, sabendo de antemão
que ninguém vai passar,
bater à porta.

Abrir, ansiosa, a caixa do correio,
duas vezes por dia,
sabendo muito bem
que está vazia.

Olhar o telefone horas a fio,
ano após ano,
tocar a campainha
e ouvir dizer: ”Desculpe, foi engano.”

Ouvir ranger a porta do ascensor,
senti-lo estremecer,
arrancar com uma espécie de estertor,
e, enfim, parar,
mas sempre noutro andar.

Pôr na mesa um talher
para alguém que vier,
sabendo muito bem
que ninguém vem.

Pôr um vestido novo,
um anel, um colar,
sabendo que ninguém vai reparar.

Ver o cabelo embranquecer aos poucos,
a pele envelhecer, perder o viço,
e ninguém dar por isso.

Morrer. E alguém ler num jornal:
Morreu Fulana. O funeral…

Fernanda de Castro (1900-1994)






COMO SE MORRE DE VELHICE

Como se morre de velhice 
ou de acidente ou de doença, 
morro, Senhor, de indiferença. 

Da indiferença deste mundo 
onde o que se sente e se pensa 
não tem eco, na ausência imensa. 

Na ausência, areia movediça 
onde se escreve igual sentença 
para o que é vencido e o que vença. 

Salva-me, Senhor, do horizonte 
sem estímulo ou recompensa 
onde o amor equivale à ofensa. 

De boca amarga e de alma triste 
sinto a minha própria presença 
num céu de loucura suspensa. 

(Já não se morre de velhice 
nem de acidente nem de doença, 
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles (1901-1964)







VELHICE
Rio de Janeiro, 1933

Virá o dia em que eu hei de ser um velho experiente
Olhando as coisas através de uma filosofia sensata
E lendo os clássicos com a afeição que a minha mocidade não permite.
Nesse dia Deus talvez tenha entrado definitivamente em meu espírito
Ou talvez tenha saído definitivamente dele.
Então todos os meus atos serão encaminhados no sentido do túmulo
E todas as ideias autobiográficas da mocidade terão desaparecido:
Ficará talvez somente a ideia do testamento bem escrito.
Serei um velho, não terei mocidade, nem sexo, nem vida
Só terei uma experiência extraordinária.
Fecharei minha alma a todos e a tudo
Passará por mim muito longe o ruído da vida e do mundo
Só o ruído do coração doente me avisará de uns restos de vida em mim.
Nem o cigarro da mocidade restará.
Será um cigarro forte que satisfará os pulmões viciados
E que dará a tudo um ar saturado de velhice.
Não escreverei mais a lápis
E só usarei pergaminhos compridos.
Terei um casaco de alpaca que me fechará os olhos.

Serei um corpo sem mocidade, inútil, vazio
Cheio de irritação para com a vida
Cheio de irritação para comigo mesmo.

O eterno velho que nada é, nada vale, nada vive
O velho cujo único valor é ser o cadáver de uma mocidade criadora.

Vinicius de Moraes (1913-1980)

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