Onde é que estava?
Crónica de Miguel Esteves Cardoso
Interromper obriga a reler e a trazer para a terra parágrafos que foram feitos para voar. A concentração não é um esforço físico: é um resultado da qualidade do livro e da força com que nos prende.
Há as pessoas que têm pena de eu estar a ler um livro. Sentam-se para me fazer companhia — porque qualquer tipo de conversa é preferível à tortura solitária de estar embrenhado num livro.
Digo que tenho de acabar o livro. Sorriem: “Eu sei o que é estar só. Eu também já fui ostracizado, durante a puberdade, nas berças onde nasci.”
Depois há os que pedem desculpa por interromper a leitura. Como não lêem habitualmente livros, não fazem ideia do que estão a fazer. Interromper uma leitura é como parar um comboio em andamento. (O corrector do Word acabou de me interromper, achando que “andamento” era uma palavra inglesa e corrigiu para and Amen to... o corrector.)
É por uma boa razão que só se pode parar um comboio em caso de urgência. Um livro também tem muitos personagens em movimento. É preciso ganhar balanço para entrar num livro e saltar de palavra em palavra, até nos esquecermos que estamos ali e conseguirmos desaparecer, mergulhados noutros mundos, nas experiências de outras vidas.
Interromper obriga a reler e a trazer para a terra parágrafos que foram feitos para voar. A concentração não é um esforço físico: é um resultado da qualidade do livro e da força com que nos prende.
Interromper é arrancar-nos deste estado de graça que é a pura e deliciosa distracção — e que não se pode ligar e desligar como se estivéssemos a ler uma palavra de cada vez, como se um romance fosse só uma lista de palavras que se pudesse retomar em qualquer fragmento.
Onde é que eu estava? No paraíso.
Miguel Esteves Cardoso, "Onde é que estava?", Público-Ípsilon, 29 de setembro de 2017
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