Segundo livro de crónicas, de Lobo Antunes
Autor: António Lobo Antunes
Título: Segundo Livro de Crónicas
Editora: Leya
Data de edição/impressão: 2007
ISBN: 9789722033077
Obra recomendada pelas Metas Curriculares de Português para o 9º ano de escolaridade.
Crónica "Receita para me lerem"
"Sempre
que alguém afirma ter lido um livro meu fico dececionado com o erro. É que os
meus livros não são para serem lidos no sentido em que usualmente se chama ler:
a única forma
parece-me
de
abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma
doença. Dizia-se de Bjorn Borg, comparando-o com outros tenistas, que estes
jogavam ténis enquanto Borg jogava outra coisa. Aquilo a que por comodidade chamei
romances, como poderia ter chamado poemas, visões, o que se quiser, apenas se
entenderão se os tomarem por outra coisa. A pessoa tem de renunciar à sua
própria chave
aquela
que todos temos para abrir a vida, a
nossa e
a alheia
e
utilizar a chave que o texto lhe oferece. De outra maneira torna-se
incompreensível, dado que as palavras são apenas signos de sentimentos íntimos,
e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície que utilizo
para conduzir ao fundo avesso da alma. A verdadeira aventura que proponho é
aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume do inconsciente,
à raiz da natureza humana. Quem não entender isto aperceber-se-á apenas dos
aspetos mais parcelares e menos importantes dos livros: o país, a rela homem-mulher,
o problema da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da
exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do ponto de vista
político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com o meu trabalho.
O mais que, em geral, recebemos da vida, é um conhecimento dela que chega bem
tarde. Por isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões
definidas: são, somente, símbolos materiais de ilusões fantásticas, a
racionalidade truncada que é nossa. É preciso que se abandonem ao seu aparente
desleixo, às suspensões, às longas elipses, ao assombrado vaivém das ondas que,
a pouco e pouco, os levarão ao encontro da treva fatal, indispensável ao
renascimento e à renovação do espírito. É necessário que a confiança nos
valores comuns se dissolva página a página, que a nossa enganosa coesão
interior vá perdendo gradualmente o sentido que não possui e todavia lhe
dávamos, para que outra ordem nasça desse choque, pode ser que amargo mas inevitável.
Gostaria que os meus romances não estivessem nas livrarias ao lado dos outros,
mas afastados e numa caixa hermética, para não contagiarem as narrativas
alheias ou os leitores desprevenidos: é que sai caro buscar uma mentira e
encontrar uma verdade. Caminhem pelas minhas páginas como num sonho porque é
nesse sonho, nas suas claridades e nas suas sombras, que se irão achando os
significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos
instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma vez acabada a
viagem
e
fechado o livro
convalesça.
Exijo que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance
ou
poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar
a fim
de poder ter assento no meio dos demónios e dos anjos da terra. Outra abordagem
de que escrevo é
limita-se
a ser
uma
leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante terá a sua carne consumida
na solidão e na alegria . Isto não se torna complicado se tomarem a obra como a
tal doença que acima referi: verão que regressam de vocês mesmos carregados de
despojos. Alguns
quase
todos
os mal
entendidos em relação ao que faço, derivam do facto de abordarem o que escrevo
como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a surpresa vem de não
existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos
concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos
aparentemente para melhor respirarmos. Abandonem as vossas roupas de criaturas
civilizadas, cheias de restrições, e permitam-se escutar a voz do corpo.
Reparem
como as figuras que povoam o que digo não são descritas e quase não possuem
relevo: é que se trata de vocês mesmos. Disse em tempos que o livro ideal seria
aquele em que todas as páginas fossem espelhos: refletem-me a mim e ao leitor,
até nenhum de nós saber qual dos dois somos. Tento que cada um seja ambos e
regressemos desses espelhos como quem regressa da caverna do que era. É a única
salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras, a única que me interessa.
Era altura de ser claro acerca do que penso sobre a arte de escrever um
romance, eu que em geral respondo às perguntas dos jornalistas com uma
ligeireza divertida, por se me afigurarem supérfluas: assim que conhecemos as
respostas, todas as questões se tornam inimportantes. E, por favor, abandonem a
faculdade de julgar: logo que se compreende, o julgamento termina, e
quedamo-nos, assombrados, diante da luminosa facilidade de tudo. Porque os meus
romances são muito mais simples do que parecem: a experiência da antropofagia
através da fome continuada, e a luta contra as aventuras sem cálculo mas com
sentido prático que os romances em geral são. O problema é faltar-lhes o
essencial: a intensa dignidade de uma criatura inteira. Faulkner, de que já não
gosto o que gostava, dizia ter descoberto que escrever é uma muito bela coisa:
faz os homens caminharem sobre as patas traseiras e projetarem uma enorme
sombra. Peço-lhes que deem por ela, compreendam que vos pertence e, além de
compreenderem que vos pertence, é o que pode, no melhor dos casos, dar nexo à
vossa vida."
Antunes, António Lobo - "Receita para me lerem", in Segundo livro de crónicas. Lisboa: Leya, 2007
António Lobo Antunes lê uma das suas crónicas:
"O António é esquisitíssimo"
2011. Dia Mundial do Livro.
Leitura da crónica de António Lobo Antunes, "Na Feira do Livro", por Luís Aguilar
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