quarta-feira, 1 de abril de 2020

Saramago e os computadores







Uma metáfora, a do campo de batalha, serve a José Saramago para expor as diferenças entre o acto da escrita no computador e o na máquina de escrever. "Numa máquina de escrever, temos de elaborar o pensamento antes de passá-lo ao papel: é muito trabalhoso e obriga a que se atire muito papel fora. O ecrã é um papel que está sempre limpo e tem uma vantagem enorme: se há uma ideia, ainda que esteja mal alinhada, escreve-se e depois trabalha-se. Comparo o ecrã do computador a um campo de batalha, de onde os mortos e feridos vão sendo sempre retirados" - que são "as palavras que não interessam, as ideias imprecisas que deixaram de ter sentido".
Saramago não desenvolve previamente uma escrita à mão para, em seguida, a transcrever à máquina ou ao computador. A única excepção são as notas que aponta num caderno de capa preta, por motivos de superstição ou talvez por hábito. "O trabalho de escrita é feito directamente no computador. Escrevo no computador, corrijo no computador. A minha folha é o computador." A verdade é que Saramago alterna a sua "máquina de escrever" electrónica Videowriter - talvez por ter um ecrã e uma unidade de disquetes - com o computador. "Quando falo do computador, já é a contar com a Videowriter".
O computador propriamente dito só apareceu há duas ou três semanas na vida do escritor, que se diz ainda em fase de adaptação. A Videowriter, essa sim, mais velha, comprou-a em 1989 para substituir uma máquina Hermes, que possuía há mais de 30 anos: "Quando chegou ao fim do livro 'História do Cerco de Lisboa', renunciou ir mais além. Quando se avariava, as pessoas tinham de fabricar a peça. Em conversa com António Alçada Baptista, disse-me que tinha comprado uma máquina estupenda, que era uma Videowriter. Tinha a vantagem de ter a impressora incorporada, mas era um instrumento grande, pesado, difícil de transportar e acabei por comprar um computador Philips em segunda mão. Teve uma grande quantidade de problemas, acabou por não me servir e continuei com a Videowriter."
Tinha, porém, um sonho: "Sempre sonhei que, um dia, havia de aparecer um computador portátil com impressora. Há um ano, tive conhecimento que a Canon tinha produzido um computador com impressora. Acho que pode resolver-me o problema das viagens e a necessidade, que continuo a ter, de ver a coisa escrita no papel. Enquanto não vir as letras (o preto no branco), duvido sempre. Sou um homem doutro tempo e deste tempo. Vou usando o que aparece, mas sempre numa atitude de desconfiança. Isso é que me leva sempre a imprimir." Desprende o teclado da base do portátil e mostra que ali debaixo são introduzidas as folhas, até dez de cada vez, saindo impressas do lado de trás. O tinteiro aloja-se no canto direito, logo acima do teclado. "É uma espécie de ovo de Colombo. Sendo isto tão óbvio, como é que os outros fabricantes ainda não se lançaram sobre isto?"
Pouco escreveu no novo portátil. Continuou o romance "Ensaio sobre a cegueira", mas talvez não o termine ali por uma questão de fidelidade. "Tenho dúvidas se concluo o romance na Videowriter ou no computador. O mais provável é que o conclua na Videowriter. É uma traição que faço à Videowriter abandoná-la no meio de um livro." Mas assegura: "O próximo livro já vai ser em computador." O que também facilitará a vida ao seu editor; que até agora se via obrigado a utilizar o original em papel, porque as disquetes da Videowriter não são compatíveis com o seu equipamento de fotocomposição.
Que usos dará ao portátil? Exige-lhe pouco. "Uso o computador como uma simples máquina de escrever. É o processamento de texto, no meu caso muito simplificado. O romance é uma coisa que se vai fazendo palavra por palavra. Não há necessidade de passar blocos de texto de um sítio para o outro. É como escrever um manuscrito ou na máquina, em que cada palavra faz nascer a palavra seguinte. O uso de que faço do computador é muito limitado."
É prático, limpo, rápido e tem a magnífica vantagem da impressora incorporada - "mas não considero que seja indispensável". A preferência de muitos escritores pela caneta de tinta permanente, a esferográfica ou a velha máquina prova-o.

EQUIPAMENTOS
Um portátil Canon BN22, com uma impressora Micro-BJ incorporada, comprado há duas ou três semanas no Corte Inglés, em Madrid. Custou-lhe 399 mil pesetas.
O teclado respeita as regras da língua espanhola e, por isso, não tem o til.
Em compensação, sobre a letra "n" há um til, os pontos de interrogação e de exclamação estão de cabeça para baixo e o menu está escrito em espanhol.
O Canon substituiu uma "máquina de escrever" Videowriter, da Philips. Conserva um portátil Philips, comprado talvez em 1993, mas nunca o utiliza.

PROGRAMAS
Windows 3.1: "interface" gráfica sobre o sistema operativo MS-DOS. Write: processamento de texto, em castelhano.

FICHEIROS
Cadernos: notas para os "Cadernos de Lanzarote".
Cegueira: parte do romance que se encontra a escrever, que em princípio terá o título "Ensaio sobre a cegueira" e cuja publicação prevê para Novembro.
"É um romance, embora se chame ensaio". 

Teresa Firmino. Saramago e os computadores. In PÚBLICO, suplemento COMPUTADORES de 3 de Junho de 1995


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