quarta-feira, 8 de abril de 2020

Porque é que o vírus é tão cruel com o Norte?


A tempo e  a desmodo
Por Henrique Raposo



P
orque é que o vírus castiga mais os latinos? Porque é que Itália, Espanha e França são mais castigadas do que a Alemanha ou a Holanda, países tão ou mais integrados na globalização? O que diferencia as sociedades? A causa é genética ou cultural?

O que vou dizer a seguir é só uma hipótese, mas parece-me válida e bastante cruel para nós, latinos. Se este é um vírus que se espalha sobretudo pelo contacto social, então atinge sobretudo o coração da vida dos latinos, que saem mais à rua, estão mais em grupo, estão mais vezes em contexto de família alargada, os avós fazem parte do dia a dia dos netos e filhos, tocam-se enquanto falam, falam com as mãos, falam mais alto. A frieza dos povos germânicos, neste caso, é um escudo antiviral que nós felizmente não temos. Escrevo “felizmente” porque isto não pode pôr em causa a nossa natureza latina, não pode.
Em comparação com as pessoas da Grande Lisboa, as pessoas do Norte são mais expansivas e simpáticas, tocam-se mais, estão mais em família, os avós e tios fazem parte integrante do dia a dia de netos e sobrinhos, há menos isolamento


Se aplicarmos esta hipótese cultural a Portugal, percebemos porque é que o Norte está a ser desproporcionalmente castigado pelo vírus. Em comparação com as pessoas da Grande Lisboa, as pessoas do Norte são mais expansivas e simpáticas, tocam-se mais, estão mais em família, os avós e tios fazem parte integrante do dia a dia de netos e sobrinhos, há menos isolamento. Se o contágio precisa da comunhão e do toque humano, então o norte só podia ser a zona mais castigada. Se esta hipótese cultural e familiar estiver correta, o castigo deste e de outros vírus será sempre maior nos países e nas zonas mais latinas; o vírus até se podia chamar a Máquina que Mata Latinos. A nossa cultura pede o toque, o beijo, o abraço, a comunhão familiar, os restaurantes e cafés.
Que as nossas sociedades latinas continuem a ser o que sempre foram depois da tempestade. Que o Norte continue a ser o que sempre foi. Se me permitem, termino com a declaração de amor ao Norte que está no meu livro “Alentejo Prometido”: “Nunca tinha pensado nisto, mas a verdade é que os alentejanos não se tocam. Estar ao pé de um homem do Norte é estar sempre a levar com braços, cotovelos, encontrões, abraços, cabeçadas, pontapés, há nele uma linguagem corporal anterior à linguagem verbal; o alentejano não tem esta expressividade. O porte sulista exige uma figura esfíngica, quase inerte, que recusa falar com as mãos; o alentejano vive dentro de uma camisa de forças emocional que bloqueia a espontaneidade. Nem por acaso, não me lembro de sorrisos ou abraços espontâneos dos meus quatro avós. Mas lembro-me de muitos abraços, beijos e caretas da tia Dorinda. Percebo agora que ela sofreu bastante nesta secura emocional que está a montante da secura do montado.”
Que a Covid-19 não seja a morte das Dorindas que mantêm a simpatia acesa no Norte.
Expresso, 7 de abril de 2020


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