Diário da peste, por Gonçalo M. Tavares
Diário da Peste,
10 de Abril
10 de Abril
Dois comandantes afundam um navio.
Imagino uma multidão a levantar um dedo, bem alto, como a dizer: um, só queremos um.
Zero comandantes imobilizam um navio.
Nem dois, nem zero.
Um está bem.
“De qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”.
Mas as pessoas estão a acordar cansadas, como cavalos velhos.
Muitos adolescentes estão a rapar o cabelo.
Uma amiga diz que cortou as sobrancelhas para ver como ficava.
Como não está com ninguém, ter sobrancelhas ou não, não é importante.
Nunca mais vou ter hipótese de experimentar isto, diz.
Leio “Tempo de Mágicos”, de Eilenberger, sobre os filósofos Benjamin, Heidegger e Wittgenstein.
Wittgenstein tornou-se a certa altura um devoto.
Dava aulas a crianças numa pequena vila perdida na montanha.
Pousava o relógio sobre a mesa no início da aula e dizia: Oremos.
Fechava os olhos e começava:
“Espírito Santo, vem derramar
sobre nós a luz da Tua graça
Para que continuemos a avançar
Sempre aprendendo a nossa tarefa.
Guardar muito bem a lição
E nunca nos gelar o coração.”
O mais brilhante filósofo do século XX, de olhos fechados e mãos juntas, a rezar.
Um filósofo que fecha os olhos, antes de ensinar as crianças.
Uma síntese rápida de despojamento.
Suspender a visão e a lucidez, abdicar do controlo: fechar os olhos.
E depois tentar ensinar aqueles que estão a começar.
Ponho George Brassens “La Mauvaise Réputation”.
Crença e heresia.
Wittgenstein era um colérico. Não era fácil.
Mas não basta irritares-te facilmente para seres um filósofo.
Nem só de gritos se faz um raciocínio, digo e rio-me.
Começo a dizer segredos ao meu próprio ouvido. Em poucas semanas se faz um maluco. Não é coisa tão difícil assim.
Depois disto tudo, temos de contar os vivos que não saiam à rua em zigzag.
Só esses vão ter a mão a perceber o caminho, sem tremer demasiado.
Eilenberger conta com detalhe um episódio.
Uma vez Wittgenstein enervou-se de tal forma com uma criança que “bateu na cabeça do aluno” com o seu próprio caderno.
E bateu “por tanto tempo que o material se desfez e as folhas caíram soltas” pelo chão da sala.
Qual foi a terrível falha do menino?
Nada que se relacione com o alfabeto ou com a aritmética.
Nenhuma falha no raciocínio lógico.
Wittgenstein tinha apenas perguntado onde Jesus tinha nascido.
E o menino havia respondido: Jerusalém.
Wittgenstein ficou colérico: não há falha como uma falha assim.
Para a semana, filmes de Tarkovsky, Sokurov e Rossellini.
O cineasta Eisenstein e uma frase que sempre me marcou: “Não bebas a água a menos que ela esteja a ferver.”
Porque é que ele disse isso? Não sei.
Era um estudante, tinha dezassete anos.
Com essa idade só se bebem as coisas a ferver.
Tomo café e café. Sem açúcar, uma bomba simples.
O terceiro? O terceiro café.
Ponho a versão de Paco Ibánez, “La mala reputatión”.
En mi pueblo sin pretensión/Tengo mala reputación.
Uma frase de Wittgenstein: ele diz que se devia ter orientado para o bem e tornado uma estrela no meio da noite.
Afinal, diz ele, “fiquei parado na Terra e agora começo pouco a pouco a murchar”.
Ficar parado na terra e começar aos poucos a murchar.
Volto a 2020. Ibánez.
Yo no pienso pues hacer ningún daño/ Queriendo vivir fuera del rebaño
Nova Iorque, na ilha de Hart, distrito do Bronx.
Ilha também usada como cadeia.
Um drone capta a imagem.
Funcionários contratados pela administração central pousam suavemente caixões brancos num grande buraco.
Normalmente o trabalho costuma ser feito por prisioneiros, “mas o aumento do número de corpos obrigou a contratar empresas especializadas.”
Muitos destes funcionários foram contratados nos últimos dias.
Visto de longe poderia parecer o início das fundações de um novo edifício.
É preciso escavar para depois subir.
Mas ali não há subidas.
Pelo menos, naquele momento, os corpos só descem.
Vítimas que não foram identificadas ou cuja família não tem dinheiro para o funeral.
Uma vala comum é isto: estar no meio de uma multidão mesmo depois de morto.
Não se trata de não ter nome, mas sim de não ter privacidade nem sequer nos momentos que se seguem ao último momento.
Respiro.
Porque rapaste as sobrancelhas, pergunto.
A moça manda um sms com um sinal de quem encolhe os ombros.
Zane Powles, um professor inglês, percorre “mais de oito quilómetros a pé por dia para entregar refeições em casa de alunos”.
Leva-lhes também os trabalhos de casa.
“Para que continuemos a avançar
Sempre aprendendo a nossa tarefa.”
E o coração não gelar. A oração de Wittgenstein.
“O método é muito simples: Powles coloca o almoço no chão”, bate à porta “e depois espera na calçada ou no jardim que alguém abra e recolha a refeição.”
Na localidade de Grimsby, 34% das crianças vivem em estado de pobreza.
Essas crianças, da Western Primary School, têm direito a refeições escolares gratuitas.
Powles caminha então esses oito quilómetros e entrega a comida e os trabalhos de casa.
"Os pais e as crianças vêm à janela ou à porta para acenar e dizer olá”, diz Powles, um ex-militar.
Powles vai carregado, com muitas mochilas.
Regressa depois cansado, mas bem mais rápido.
Imagino uma multidão a levantar um dedo, bem alto, como a dizer: um, só queremos um.
Zero comandantes imobilizam um navio.
Nem dois, nem zero.
Um está bem.
“De qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”.
Mas as pessoas estão a acordar cansadas, como cavalos velhos.
Muitos adolescentes estão a rapar o cabelo.
Uma amiga diz que cortou as sobrancelhas para ver como ficava.
Como não está com ninguém, ter sobrancelhas ou não, não é importante.
Nunca mais vou ter hipótese de experimentar isto, diz.
Leio “Tempo de Mágicos”, de Eilenberger, sobre os filósofos Benjamin, Heidegger e Wittgenstein.
Wittgenstein tornou-se a certa altura um devoto.
Dava aulas a crianças numa pequena vila perdida na montanha.
Pousava o relógio sobre a mesa no início da aula e dizia: Oremos.
Fechava os olhos e começava:
“Espírito Santo, vem derramar
sobre nós a luz da Tua graça
Para que continuemos a avançar
Sempre aprendendo a nossa tarefa.
Guardar muito bem a lição
E nunca nos gelar o coração.”
O mais brilhante filósofo do século XX, de olhos fechados e mãos juntas, a rezar.
Um filósofo que fecha os olhos, antes de ensinar as crianças.
Uma síntese rápida de despojamento.
Suspender a visão e a lucidez, abdicar do controlo: fechar os olhos.
E depois tentar ensinar aqueles que estão a começar.
Ponho George Brassens “La Mauvaise Réputation”.
Crença e heresia.
Wittgenstein era um colérico. Não era fácil.
Mas não basta irritares-te facilmente para seres um filósofo.
Nem só de gritos se faz um raciocínio, digo e rio-me.
Começo a dizer segredos ao meu próprio ouvido. Em poucas semanas se faz um maluco. Não é coisa tão difícil assim.
Depois disto tudo, temos de contar os vivos que não saiam à rua em zigzag.
Só esses vão ter a mão a perceber o caminho, sem tremer demasiado.
Eilenberger conta com detalhe um episódio.
Uma vez Wittgenstein enervou-se de tal forma com uma criança que “bateu na cabeça do aluno” com o seu próprio caderno.
E bateu “por tanto tempo que o material se desfez e as folhas caíram soltas” pelo chão da sala.
Qual foi a terrível falha do menino?
Nada que se relacione com o alfabeto ou com a aritmética.
Nenhuma falha no raciocínio lógico.
Wittgenstein tinha apenas perguntado onde Jesus tinha nascido.
E o menino havia respondido: Jerusalém.
Wittgenstein ficou colérico: não há falha como uma falha assim.
Para a semana, filmes de Tarkovsky, Sokurov e Rossellini.
O cineasta Eisenstein e uma frase que sempre me marcou: “Não bebas a água a menos que ela esteja a ferver.”
Porque é que ele disse isso? Não sei.
Era um estudante, tinha dezassete anos.
Com essa idade só se bebem as coisas a ferver.
Tomo café e café. Sem açúcar, uma bomba simples.
O terceiro? O terceiro café.
Ponho a versão de Paco Ibánez, “La mala reputatión”.
En mi pueblo sin pretensión/Tengo mala reputación.
Uma frase de Wittgenstein: ele diz que se devia ter orientado para o bem e tornado uma estrela no meio da noite.
Afinal, diz ele, “fiquei parado na Terra e agora começo pouco a pouco a murchar”.
Ficar parado na terra e começar aos poucos a murchar.
Volto a 2020. Ibánez.
Yo no pienso pues hacer ningún daño/ Queriendo vivir fuera del rebaño
Nova Iorque, na ilha de Hart, distrito do Bronx.
Ilha também usada como cadeia.
Um drone capta a imagem.
Funcionários contratados pela administração central pousam suavemente caixões brancos num grande buraco.
Normalmente o trabalho costuma ser feito por prisioneiros, “mas o aumento do número de corpos obrigou a contratar empresas especializadas.”
Muitos destes funcionários foram contratados nos últimos dias.
Visto de longe poderia parecer o início das fundações de um novo edifício.
É preciso escavar para depois subir.
Mas ali não há subidas.
Pelo menos, naquele momento, os corpos só descem.
Vítimas que não foram identificadas ou cuja família não tem dinheiro para o funeral.
Uma vala comum é isto: estar no meio de uma multidão mesmo depois de morto.
Não se trata de não ter nome, mas sim de não ter privacidade nem sequer nos momentos que se seguem ao último momento.
Respiro.
Porque rapaste as sobrancelhas, pergunto.
A moça manda um sms com um sinal de quem encolhe os ombros.
Zane Powles, um professor inglês, percorre “mais de oito quilómetros a pé por dia para entregar refeições em casa de alunos”.
Leva-lhes também os trabalhos de casa.
“Para que continuemos a avançar
Sempre aprendendo a nossa tarefa.”
E o coração não gelar. A oração de Wittgenstein.
“O método é muito simples: Powles coloca o almoço no chão”, bate à porta “e depois espera na calçada ou no jardim que alguém abra e recolha a refeição.”
Na localidade de Grimsby, 34% das crianças vivem em estado de pobreza.
Essas crianças, da Western Primary School, têm direito a refeições escolares gratuitas.
Powles caminha então esses oito quilómetros e entrega a comida e os trabalhos de casa.
"Os pais e as crianças vêm à janela ou à porta para acenar e dizer olá”, diz Powles, um ex-militar.
Powles vai carregado, com muitas mochilas.
Regressa depois cansado, mas bem mais rápido.
Expresso, 11 de abril de 2020
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