sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Os selfistas




Que coisa são as nuvens

Por José Tolentino Mendonça








A PROPOSIÇÃO QUE MOVE A SELFIE É AGORA ESTE VIDEOR ERGO SUM (SOU VISTO LOGO EXISTO), PROPAGADO POR TODA A PARTE
A



selfie tornou-se um sintoma do tempo em que vivemos. Se pensarmos na fotografia tradicional era claro o seu papel em relação à temporalidade da vida: a fotografia, fixando o tempo, como que o prolongava, assumindo-se, no confronto com a nossa existência, como uma arte da memória. Não é por acaso que imprimíamos as fotografias e as recolhíamos num álbum, e deixámos de o fazer com o material fotográfico que simplesmente acumulamos nos telemóveis. Quer dizer que a função da imagem mudou. A fotografia tradicional pretendia ser ainda um registo ao serviço da interpretação da vida. O seu processamento chamava-se justamente “revelação”, pois era disso que se tratava, e não só a um nível imediato, mas numa profusão de detalhes significativos que a simples visão normalmente não deteta. Na sua “Pequena História da Fotografia”, Walter Benjamin afirma, por exemplo, que na fotografia fazemos a experiência do “inconsciente ótico”, do mesmo modo que as psicoterapias nos permitem aceder ao “inconsciente pulsional”. A fotografia testemunhava assim, de um modo amplo e singular, o domínio visível do sujeito, mas também nos avizinhava do seu campo invisível.


A selfie, pelo contrário, transaciona sobre o imediato, como se o sujeito histórico se tivesse tornado evanescente e a sua duração (histórica, psicológica...) se dissolvesse para permitir que a aparição instantânea se torne um fim. A proposição que move a selfie é agora este videor ergo sum (sou visto logo existo), propagado por toda a parte. Mas fazer depender a existência deste tipo de visibilidade dá razão àquilo que o psiquiatra italiano Giovanni Stanghellini escreve num ensaio recente (“Selfie. Sentirsi nello sguardo dell’altro”, Feltrinelli, 2020): “a instantaneidade da selfie é semelhante à temporalidade esfomeada e sem fôlego de um ataque bulímico”. De facto, para compreendermos a contemporânea bulimia que nos torna a todos produtores ininterruptos de imagens temos de procurar a razão de fundo que permanece escondida, e que é uma dramática anorexia em relação ao ser.


A fotografia testemunhava assim, de um modo amplo e singular, o domínio visível do sujeito, mas também nos avizinhava do seu campo invisível


É verdade que enquanto a fotografia tradicional nos permitia dizer “eu sou esta pessoa”, a selfie nos parece fazer dizer “eu estou aqui”. Mas este “aqui” é um espaço atópico, errante, que nunca chega a ser habitado. Por isso se caracteriza justamente o selfista como um turista e não já como um viajante. Enganamo-nos, portanto, se pensamos que a selfie serve para assinalar a nossa passagem por um determinado lugar: ela é sim o resultado de uma radical desterritorialização da vida, capturada pela ânsia da comunicação virtual, mais do que pelo desejo de documentar o real.

O que procuramos então nas selfies? Stanghellini explica que buscamos uma “prótese” existencial, uma “técnica de si” ativada para dar uma resposta ficcional à necessidade de fundar a própria identidade. Perante a exigência de nos definirmos a nós próprios, em tempos de “aporia identitária”, a selfie é “o dispositivo que responde (que tenta responder) à pergunta ‘quem sou?’”. Mas este psiquiatra que dirige uma escola de psicoterapia em Florença é dirimente: “O mito da instantaneidade como satisfação alucinatória da necessidade de vizinhança ou de ultrapassagem da distância transforma a experiência do sujeito apenas numa sequência sincopada de acontecimentos isolados e encerrados neles mesmos. E quando pedimos aos outros para assistir — se bem que ao longe — a estes acontecimentos, é porque só nos sentimos presentes quando fazemos de nós próprios um espetáculo.” Não admira que a era da selfie seja também a do crepúsculo do rosto.

E-Revista Expresso
, 14 de fevereiro de 2020



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