terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O cornicho de Aquiles



O Mito Lógico | Luís Pedro Nunes



Aquiles ferido no seu ponto fraco, o calcanhar



Caminhar almofadado, descalço ou deixar de andar. Dilemas civilizacionais
B
icos de papagaio no calcanhar? Podia lá ser? Podia. Quase dois anos após uma ridícula queda de mota que resultou em seis parafusos no maléolo e um pé deslocado — tudo resolvido em três meses —, eis que comecei a coxear do lado esquerdo. Feito o raio X, ali estava um cornicho ósseo no calcâneo. É o que o Trump alegou para se safar do Vietname, galhofou-se. Os tais bone spurs. Não pode. Pode. Bom... agora... agora é aprender a viver com um corno no calcanhar. OK. E como se faz isso? E aqui entrámos numa questão civilizacional. Antropológica.

O cirurgião ortopédico apontou um caminho. O fisioterapeuta outro. Um aconselhou a usar proteções fofas na zona do calcanhar, de modo a minorar as dores (ah, já disse que isto dói como o caraças?), o outro que devia usar calçado sem proteção, porque o problema era o andar baseado no calcanhar. Ora eu já conhecia este “cisma civilizacional do caminhar”. Até tinha escrito sobre tal quando há mais de uma década o guru da corrida descalço, Christopher McDougall, era a última Coca-Cola no deserto e toda a gente achava que se ia passar a correr maratonas sem calçado. Mas agora a situação era mais grave. Ou passava a usar ténis hiperalmofadados ou passava para pé descalço. Com um asterisco: tinha de reaprender a andar. Certo. Analisemos a situação.

Eis a teoria que deduzo esteja correta, dado estar sustentada em inúmeros estudos científicos cheios de bonecos e gráficos. Só há muito pouco tempo os humanos usam calçado; as primeiras sandálias surgiram apenas há uns milhares de anos, uma gota de água na evolução do hominídeo, e mesmo assim nem foi algo generalizado. E o salto alto só há bem pouco tempo. Seja como for, estamos programados mais para andar do que para correr. E para andar descalços. O que se sabe hoje e não se sabia há uns anos é que mesmo uns pés horrorosamente calejados que nunca tenham usado calçado mantêm sensibilidade e conexões ao sistema nervoso que lhes permitem dar indicações sobre o tipo de terreno que pisam (mole/duro, quente/frio), e acima de tudo o andar/correr de quem anda descalço tem uma biomecânica diferente do que fazemos atualmente. Melhor dizer o contrário, porque é o correto: atualmente andamos e corremos de forma diferente do que os nossos antepassados fizeram desde que se ergueram e se decidiram pela postura bípede — o que fez com que os olhos saíssem do chão e tenha dado aos pés uma maior responsabilidade tátil. Essa forma de se locomover não se poderia basear num movimento que começa no calcanhar com apoio do peso do corpo nesse ponto, sustentação sobre a planta do pé e movimento de mola para seguirmos para o passo seguinte. Não podia porque, se fossemos descalços pisar uma superfície espinhosa ou cortante, esse tipo de caminhar seria uma experiência desagradável, digamos. Depois de analisar não sei quantas tribos que correm descalças e comparar os impactos e forças e o raio percebeu-se que o movimento passa por colocar primeiro a planta do pé, nomeadamente as almofadinhas da frente (que assim auscultam o terreno), assentar o pé, e só aí o corpo e seu peso avança, e depois o pé faz o seu efeito de mola de impulso, com ajuda de uma perna que se estica. Mais fácil escrever do que fazer. Pareço o ministro do silly walk a tentar. E no entanto tem lógica, e mesmo nos gráficos está demonstrado que até é mais eficiente e o diabo.
Luís Pedro Nunes, E-Revista Expresso, 22 de fevereiro de 2020


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