terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

+Leitur@s | Sete Casas Vazias



Desconstruções

Samanta Schweblin viu dois dos seus livros serem finalistas do Man Booker International 
Carlos Furman/REUTERS



Acompanhado dos pais, Javier viaja 300 quilómetros até à casa onde Marga, a ex-mulher, passa férias com os filhos (e o novo namorado), só para que os netos possam ver os avós durante umas horas. Se não estivéssemos num conto de Samanta Schweblin, talvez tudo permanecesse dentro daquilo a que se convencionou chamar a “normalidade”: diálogos falsamente corteses, hipocrisia familiar, tudo o que é incómodo (desconforto, rancor, ressentimento) escondido por baixo do verniz das boas maneiras, da sã convivência social.

Acontece que estamos num conto de Samanta Schweblin, escritora argentina que insiste em rasgar o tecido do quotidiano com as lâminas da estranheza e do desajuste (aos 41 anos, não é exagero considerá-la uma legítima herdeira de Julio Cortázar). Os pais de Javier decidem despir-se e brincar no jardim, com uma mangueira, molhando à vez os seus decrépitos corpos nus. Irritadíssima, Marga pergunta a Javier o que acontecerá quando os netos chegarem do supermercado. E responde: “Vão morrer de vergonha dos avós.” O discurso racional chega-se à frente, ocupa o primeiro plano, entra em pânico quando os miúdos desaparecem da vista e ninguém sabe onde estão, mas é permanentemente sabotado pela rebeldia das duas gerações que não chegam a ter voz ou palavra, estão só lá atrás (nos interstícios do real), como que desfocadas, urdindo uma cumplicidade que escapa à compreensão dos adultos sérios e pode ser confundida com loucura, quando é apenas o exercício de uma liberdade absoluta e vagamente selvagem.

Os sete contos que Schweblin reúne neste livro partem sempre de um movimento de desconstrução: física, psicológica, moral ou arquitetónica. Há casas que se tornam demasiado grandes, ou demasiado sufocantes, ou demasiado cheias da memória de quem já morreu, ao ponto de expulsarem os seus habitantes, empurrando-os para uma espécie de escuridão primordial, um limbo em que a lógica se suspende, abrindo caminho para situações de um insólito que tanto parece da ordem do sonho como de um excesso de lucidez. Numa das histórias, uma mulher sai para a rua e anda à deriva na noite, “nua por baixo do roupão”, com uma toalha a envolver o cabelo molhado, porque não consegue dizer ao marido o que tem mesmo de lhe dizer. Noutra, alguém atravessa a cidade para comprar aspirinas, só isso, mas pelo caminho descobre a angústia de quem não tem para onde ir, nem um lugar que seja seu: “Estava sentada em quarenta centímetros quadrados, e era só isso que o seu corpo ocupava no mundo.

José Mário Silva, E-Revista Expresso, 22 de fevereiro de 2020




Autor : Samanta Schweblin
Editora: Elsinore
ISBN : 9789896687274
1ª Edição: fevereiro de 2020
Páginas :128


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