«Desenhar será pôr em situação os elementos de uma relação. A ilustração de um texto poderá ser encarada como a hipótese de visualização da sua leitura, uma espécie de síntese do que o texto evoca. E por outro lado a ilustração servirá de pretexto à uma análise das situações que constituem a narrativa e será o resultado da selecção dos elementos que deverão assegurar a necessária e comunicabilidade. Do já visto se partirá para o imaginado, e aí se irá revelar a qualidade do observador, a invenção do artista e o entendimento do leitor que este começou por ser. Para esclarecimento do visitante desta exposição, sublinha-se o facto que os desenhos que nela se mostram não são os que integraram a edição original do livro de Aquilino, perdidos por incúria minha, mas os que se guardaram entre todos os estudos que preparam aqueles. Cada um dos desenhos que devia servir de ilustração fora ensaiado e repetido tantas vezes quanto as julgadas necessárias para a clareza da imagem, tal como o actor busca limpidez na boa articulação das palavras que compõem o texto dramático. A maior parte destes desenhos foi destruída, conservando-se apenas aqueles em que se julgou ver uma hipótese de clareza.» Júlio Pomar
Os desenhos de Júlio Pomar para O Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro, por ocasião das comemorações dos 150 anos da publicação de Amor de Perdição. Segundo o presidente do CCB, Vasco Graça Moura, a proposta passa, assim, por descobrir “o mundo camiliano do século XIX pelo pincel de um grande pintor do século XX”.
Camilo visto por Júlio Pomar
A obra de Júlio Pomar revela com grande frequência uma relação muito estreita com a literatura. É extensa a lista das suas incursões nesse campo, abrangendo, entre outros, obras e nomes como os de Baudelaire e Jorge Luís Borges, Fernão Mendes Pinto e Luís de Camões, Edgar Poe e Fernando Pessoa, Dante Alighieri e José Cardoso Pires. O voo lírico, a ironia, a estranheza, o desassossego, a dimensão simbólica, reencontram-se nesse processo criativo de figuração e refiguração plástica de situações, de posturas, de atitudes e fisionomias, de circunspecções e divertimentos, por vezes em notações extremamente sintéticas, por vezes em exercícios de um ludismo realista e vertiginoso.
À perspectiva do ilustrador de textos que sabe, de um modo certeiro, colher as sugestões neles contidas, junta-se a obra do retratista de autores, formando já uma considerável galeria de celebridades. Também aí, Pomar é de uma argúcia e de uma “literariedade” fora do comum, porquanto, no seu tão característico virtuosismo de execução, alia a uma reconhecibilidade perfeitamente conseguida, e por assim dizer emblemática, da figura do autor retratado, uma espécie de síntese penetrante que decorre da sua própria leitura da obra dele. Ou, se se quiser, Pomar propõe-nos visão e uma leitura, a sua visão e a sua leitura, da obra e do homem em termos tão pessoais e idiossincráticos que é como se cada um dos seus retratos de escritores funcionasse como um quase heterónimo do pintor...
Vemos da presente série que o desenho a nanquim, a que recorre quase sempre, é também uma «forma de escrita», ágil, pitoresca, cheia de movimento, capaz de ângulos e planos quase cinematográficos, inesperados e saborosos na maneira de exprimir, nas suas rápidas notações, aquilo que o texto literário diz ou implica, quer se trate de situações individuais, quer de pequenos grupos ou conjuntos, quer de massas populares em agitação. Nestas ilustrações para o Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro, o traço e a mancha dão sucessivas expressões à ironia e à sátira, revisitando o mundo camiliano do século XIX pelo pincel de um grande pintor do século XX.
Vasco Graça Moura
Sem comentários:
Enviar um comentário