domingo, 6 de agosto de 2017

Sabemos o que é um livro?






Lembro-me de que em Paris, à entrada de um alfarrabista para os lados de Notre-Dame, vi copiado o início do poema que Walt Whitman dedicou "a um estranho". E os versos de arranque dizem o seguinte: "Estranho que por mim passas! não sabes com que/ desejo ardente meus olhos te fitam." Os estranhos somos nós, os leitores, os possíveis leitores ou os que não chegamos a sê-lo, pois tantas vezes passamos ignorando o que os livros nos dedicam e a longa espera, mesmo se falhada, que fazem por nós.  Falar de indústria a propósito dos livros é um palreio escasso, quando não absurdo. Nos livros interessa não a sua materialidade mas a pré-história que a contamina. Um livro é um enigma como as pirâmides do Egito. É um laboratório em combustão. Uma saída de emergência. Um clube de socorro a náufragos. Um intercomunicador entre silêncios. Um lança-chamas. Um abrigo de floresta. Um trilho mais adiante.

Será que sabemos o que é um livro? [...]

A estrofe final do poema de Walt Whitman sempre me pareceu um retrato exato da responsabilidade que os escritores sentem para com os leitores, esses estranhos a quem dedicam o melhor da sua vida: "Eu sou quem existe para/ pensar em ti quando fico sozinho/ ou de noite acordo,/Eu sou quem deve esperar, seguro de voltar a/ encontrar-te,/ Eu sou quem deve cuidar de te não perder para/ sempre."

José Tolentino Mendonça, Que coisa são as nuvens - Sabemos o que é um livro?", E-Revista Expresso, 10 de junho, 2017, p. 92.


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