"Parece um verbo idiota, este contrabalançar. Não seria mais correto pensar que as coisas simplesmente são ou não são e deveriam aspirar por todos os meios a essa clareza, ponto final? Contrabalançar dá a ideia de ficar a meio caminho, abdicando daquela inteireza que, contra ventos e marés, objetiva a nossa verdade. Soa a uma prática de equilibrismo existencial, um pé aqui e outro ali, o balanço de lá e cá. É como se, em vez de lutar por uma unidade imediata, aceitássemos a divisão como ponto de partida ou como processo, condescendendo com a disparidade que nos coube e enredando-se num jogo de compensações. É como se assumíssemos a nossa trajetória biográfica como alguma coisa que está e não está completamente nas nossas mãos, alguma coisa cindida que, ao mesmo tempo, dominamos e nos ultrapassa, determinando que viver seja, dessa maneira, uma incessante e dolorosa iniciação à arte do possível, sem passar disso. Estranho verbo este, contrabalançar, que se diria esconder dentro de si a nossa capitulação.
E, contudo, em muitas etapas da vida, contrabalançar é precisamente o contrário: é um necessário e desassombrado exercício de sobrevivência. É a única forma de não desistir de escutar e de dar legitimidade, nas condições reais que nos coube experienciar, não apenas àquilo que nos atinge exteriormente, mas àquilo que emana de dentro de nós, a essa vida soterrada, mas que nos pertence mais do que qualquer outra, porque é a expressão singular da nossa alma. Se ficamos à espera das condições ideais, há dimensões do nosso ser que jamais tocaremos, porque a pressão externa é implacável e foge continuamente ao nosso controle. O mais habitual é que tenhamos de viver tudo ao mesmo tempo, esforçando-nos por contrabalançar com sabedoria o que poderiam ser descritos como os opostos: o previsto e o imprevisto, o familiar e o estranho, o choro e o riso, o dever e o desejo. [...] Contrabalançar é uma forma de contornar, de resistir e de acreditar. Sempre que dissermos, por exemplo, dentro de nós e com todas as forças do nosso ser, que a vida é bela, recomeçaremos livres, em relação a tudo o que a desfigura e o resto já nem importa, seguirá como o pó ao sabor do vento. [...] Contrabalançar é um ato de insubmissão da maior importância."
José Tolentino Mendonça, Que coisa são as nuvens - O verbo contrabalançar, E-Expresso Revista, 27 de julho de 2017E, contudo, em muitas etapas da vida, contrabalançar é precisamente o contrário: é um necessário e desassombrado exercício de sobrevivência. É a única forma de não desistir de escutar e de dar legitimidade, nas condições reais que nos coube experienciar, não apenas àquilo que nos atinge exteriormente, mas àquilo que emana de dentro de nós, a essa vida soterrada, mas que nos pertence mais do que qualquer outra, porque é a expressão singular da nossa alma. Se ficamos à espera das condições ideais, há dimensões do nosso ser que jamais tocaremos, porque a pressão externa é implacável e foge continuamente ao nosso controle. O mais habitual é que tenhamos de viver tudo ao mesmo tempo, esforçando-nos por contrabalançar com sabedoria o que poderiam ser descritos como os opostos: o previsto e o imprevisto, o familiar e o estranho, o choro e o riso, o dever e o desejo. [...] Contrabalançar é uma forma de contornar, de resistir e de acreditar. Sempre que dissermos, por exemplo, dentro de nós e com todas as forças do nosso ser, que a vida é bela, recomeçaremos livres, em relação a tudo o que a desfigura e o resto já nem importa, seguirá como o pó ao sabor do vento. [...] Contrabalançar é um ato de insubmissão da maior importância."
Sem comentários:
Enviar um comentário