quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Dia Internacional da Música | Mensagem da SPA








Música boa e música má? Uma questão de Bom Senso e Bom Gosto...

Aqui há vários anos, lembro-me de ter dito numa entrevista na televisão que apenas existiam, em meu entender, duas espécies de música: a boa e a má.

A afirmação parece ter agradado à maioria das pessoas, muito mais do que a mim próprio, porquanto a fiz no legítimo intuito de não prolongar mais uma conversa que sempre me pareceu bastante inútil, pelo que nem acrescentei, por exemplo, que também havia - e em grande quantidade - uma música péssima…

Contudo, se pode ser sempre positivo e saudável analisar os diversos graus de qualidade que vão do bom ao muito bom, do ótimo ao genial, já não será tão desejável chafurdar numa pesquisa entre o mau e o muito mau, o péssimo e o horrendo.


E eu estaria ainda tentado a citar o nada, que julgo ser um repertório cada vez mais promovido e mesmo apreciado, fenómeno que se reveste de uma lógica de mercado perfeitamente inatacável: os autores desse alegado nada podem desaparecer sem quaisquer problemas, de forma trágica ou prosaica, por falecimento ou entrada para a função pública, pois haverá sempre material em stock pronto a substituir o seu esforço criativo.

Antes de mais nada, porém, parece-me necessário que se levante desde já o problema do subjetivismo que terá infalivelmente que presidir a um julgamento da qualidade.


Haverá, com efeito, um critério rigoroso que possa de algum modo garantir que esta música é boa ou má, transcendente ou…até nada?!

É evidente que existem critérios com um inegável grau de seriedade que se baseiam na maior ou menor valia de uma série de elementos técnicos à base dos quais se faz música.

 
Deste modo, será correto que se valorize a harmonia de um trecho em que o acorde sobre a qual assenta todo o discurso musical, a chamada tónica, apenas se desloca para o acorde do quinto grau, a chamada dominante, regressando logo de seguida ao ponto de partida, depois de um curta e prudente passagem pela subdominante, que fica quatro notas acima…?

Em termos harmónicos, essa espécie de amibas sonoras poderá enfileirar ao lado das quase infinitas modulações que podem atravessar um tema de Wagner?

Uma melodia feita à base de meia dúzia de sons terá direito a qualquer equivalência em relação, por exemplo, ao chamado adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler- que só se tornou célebre, é um facto, após a estreia do filme “Morte em Veneza”…?

Uma série ininterrupta de batidas isócronas, poderá competir, em termos rítmica, com a esmagadora maioria das obras de Stravinsky?

E daqui poderíamos partir para as problemáticas do timbre, do jogo das intensidades, da própria proveniência dos sons - a estereofonia ou a quadrofonia - uma série de efeito criados na Basílica de São de Marcos, em Veneza, por um tal Giovani Gabrielli, ainda que desvalorizados e esquecidos durante cerca de quatro séculos, até reaparecerem como elemento estético fundamental em certas obras de Stockhausen, por exemplo.

Mas eu prefiro aceitar desde já o conceito quase sempre legítimo do contraditório e lembrar que há uma infinidade de melodias de Mozart, Haydn, Schubert, do próprio Beethoven ou, já no século XX, de Manuel de Falla, por exemplo, em que a música se desenrola basicamente entre a tónica e a dominante.

E todavia, são obras geniais.

Na 7ª Sinfonia de Beethoven, há uma melodia quase totalmente construída sobre uma só nota ( e o tão celebrado pá-rá-pá-pá da 5ª Sinfonia faz-se apenas com duas… ), isto para já não falarmos numa outra melodia que nos entra no ouvido e parece que nunca mais de lá sai, que é o extraordinário samba de Uma Nota Só…
Um desenho rítmico pouco ou nada variado e que se repete até à exaustão durante cerca de vinte minutos, faz do Bolero de Ravel uma das obras mais fascinantes da História da Música…

Portanto, não é evidente que o tal critério de avaliação da qualidade possa alicerçar-se em regras harmónicas, melódicas ou rítmicas, sendo ainda de lembrar que o excelente compositor americano Charles Ives consegue manter-nos durante largos minutos dentro de um fortíssimo que deveria, teoricamente, constituir uma barulheira infernal…

Não podemos ir por aí.

Eu nunca atribuí ao adjetivo ligeiro um sentido pejorativo, pois também sempre considerei que comer uma refeição ligeira não significa comer mal. Inclusivamente, uma bela sanduíche de presunto com um bom copo de vinho verde é decerto bem melhor do que um bife mal amanhado, com batatas gordurosas, fritas em óleo de seis dias…

Também nunca pude aceitar, é verdade, que se atribuísse a classificação de clássica à música romântica de Liszt, à impressionista de Debussy ou à expressionista de Alban Berg.

E, pior ainda, os termos erudito ou sério sempre significaram para mim alguém que “sabe muito” ou alguém que cumpre o elementar preceito de ser honesto.

Por outro lado, uma peça musical curta - ou baseada em um ou dois temas que não se desenvolvem - também não deve necessariamente definir-se como ligeira, a menos que apontemos como exemplo de música ligeira um dos aspetos mais geniais da obra de Schubert, que são os seus Lieder.

Sempre me perguntei, é um facto, qual seria a vantagem de se dividir a música em raças, em espécies ou em classes.

E depois de muito massacrado com perguntas, cheguei a uma nova definição, segundo a qual, “sempre que a música ligeira for boa, isso significa que, afinal, não é ligeira”.

Com efeito, nunca tive pachorra para ouvir música de má qualidade, talvez constitua para mim o mais desagradável dos ruídos – e confesso que fico profundamente irritado se me obrigarem a afivelar uma expressão amável ou mesmo veneradora ao escutar quaisquer exemplos de mediocridade musical, embora também seja verdade que muito me incomodariam sinfonias de Bruckner ou de Brahms com a função de animar arraiais ou bailaricos onde a voz do meu amigo Quim Barreiros, por exemplo, me parece perfeitamente adequada às circunstâncias.

 De facto, o vício de classificar e de qualificar ainda se torna mais penoso quando as pessoas se esquecem de que há diversas situações em que uma certa música, seja qual for o estilo, pode tornar-se desejável ou aberrante, pois o sentido do Belo também se insere na eterna questão do Bom Senso e Bom Gosto.
  

É evidente que, muito particularmente, a sociedade portuguesa, ignora quase completamente todo um vastíssimo património de obras de arte geniais - e tal não acontece apenas nos domínios do som.

Poderemos então perguntar:

É possível viver sem se conhecer nenhuma peça de Shakespeare, de Tchekov (muito confundido com Tchaikowsky em meios alegadamente mais cultos, pois os ignorantes puros nunca ouviram falar de tal gente…), de Brecht ou de Samwel Becket?

É possível viver sem jamais se ler Eça de Queiroz, Dostoiewsky, Thomas Mann?

É possível viver sem nunca olhar para um Velásquez, um Goya, um Renoir, um Picasso?

É possível as pessoas viverem sem nunca terem ouvido as Sinfonias de Mahler, a “Sagração da Primavera”, o “Daphnis et Chloe”, a criatividade sempre surpreendente de um Oscar Peterson?

É possível, em suma, viver sem o Belo?

Claro que é possível!

As pessoas também podem viver sem um braço, sem uma perna ou mesmo sem duas, apenas com um rim e mesmo sem o baço!

É evidente que é possível, pois as pessoas podem inclusivamente viver castradas e encontrar formas mais ou menos divertidas de passar o tempo.

Mas aqui, em plena sede da SPA, eu atrevo-me a plagiar da forma mais descarada um anúncio de sucesso na nossa televisão:

 Sem dúvida que é possível viver assim. Mas não é a mesma coisa…


António Victorino D’Almeida
Texto publicado no sítio da Sociedade Portuguesa de Autores

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