terça-feira, 25 de junho de 2024

A terra deles

 

 

 Riquixá, Transporte, Táxi, Ciclo-Riquixá



Seríamos melhores pessoas se reconhecêssemos a arbitrariedade que é ter nascido aqui ou ali


Uma questão com que a Filosofia se entretém desde há muito é a “lotaria natural” que distribui de forma arbitrária posições sociais, riqueza ou cor de pele. Nasce-se lá, do outro lado do planeta, a rezar a outro deus, num sistema de desigualdades, e não rico, a rezar a outro deus neste hemisfério — sem que se perceba que não foi uma escolha, mas um acaso geográfico inicial. Às vezes, ainda é mais absurdo, pois basta nascer de um lado de uma fronteira, de um muro, a poucos quilómetros de distância, para ter o destino traçado desde o nascimento. Imaginemos o menino André; nasceu em Portugal e era católico devoto quando jovem, por sua decisão. Isso foi opção. Mas ali na transição do século XX para XXI, a conjuntura permitiu-lhe que todo o percurso escolar até à universidade fosse feito no ensino público e mesmo o seu doutoramento no UK sobre “estigmatização de minorias” se devesse a uma bolsa do Estado português. Há valor no André. Mas teve sorte com onde nasceu e quando, dadas as vias que se abriram para lhe dar o apoio que teve para singrar. Tivesse nascido uns mil quilómetros a sul numa família de pequenos comerciantes dos arredores de Casablanca, mesmo sendo um muçulmano devoto e bom estudante, e o seu destino estava traçado, e não passaria por um doutoramento em York. Muito menos se tivesse nascido 5000 quilómetros a sul, em Niamey, capital do Níger. Aí, para se safar às milícias ligadas ao Estado Islâmico que combatem as da Al-Qaeda, era bom que o pai tivesse umas cabeças de gado para ele pastorear e sair da cidade. Talvez se safasse. Talvez. Mas também era possível que fosse raptado por um dos grupos para se tornar combatente-criança. Sem ter voz na matéria. Porque teria nascido ali na África subsariana e não branco de classe média em Algueirão. Nada disto teve que ver com o facto de um deus ser melhor do que outro. Arbitrariedade geográfica. Podia ter nascido multimilionário. Pois, mas é ver o ratio multimilionários/pobres nos 7 mil milhões de habitantes no planeta para perceber o incrível que é termos nascido em Portugal.

Há dias, ouvi isto. “Assim que um gajo do Bangladesh fizesse merda, era logo deportado para a terra dele.” A terra dele não é propriamente um paraíso. Depois de os britânicos darem a independência à Índia em 1947, a maioria hindu concluiu que tinha de correr com os muçulmanos, os largos milhões que existiam na Índia. E assim se criou o Paquistão Ocidental e o Paquistão Oriental. Escusado será dizer que os hindus cederam os piores pedaços do seu subcontinente e deram início à maior transumância humana de que há memória. Puseram lá todos os muçulmanos e tiraram os hindus. Foi assim que nasceu o Paquistão, que não é propriamente uma beleza luxuriante. E criou-se o Paquistão Oriental, que se tornou independente em 1971 — o Bangladesh: um pedaço de território que coincide com a foz de grandes rios, do tamanho da Grécia, onde vivem 170 milhões de almas. Com o derreter dos Himalaias, com a subida do nível das águas, e dado que aquilo é tudo plano, o Bangladesh chega a ter mais de 20% do território submerso. E vai piorar. O Bangladesh é dos países mais miseráveis e deprimentes que visitei. Estive lá uma única vez, faz agora dez anos. Havia bandeiras de Portugal no mais remoto canto do país. Vivia-se o Mundial de 2014.

A capital tem uns 7 milhões de habitantes, esgotos a céu aberto, autocarros zombies sobrelotados a cuspir fumo preto, um calor sujo peganhento. Quisemos ir a Chatigão, a Bengala onde os portugueses aportaram no século XVI e que chegou a ter 2 mil dos nossos compatriotas a viver. Há que contornar rios mais largos (conspurcados vindos da Índia) que desaguam no país. Havia lá uma igreja com uma placa, sim senhor. Já não havia mar. Não há tanta T-shirt que diz “made in Bangladesh”? A mão de obra é “muito” mais barata do que na China. O mar tinha uns 30 centímetros de uma papa de tecidos e tinta grossa que vinha das fábricas têxteis ali perto. Um pouco mais ao longe, não nos deixaram ver, havia um estaleiro de ferrugem no longo areal onde homens estariam a desmantelar à mão navios colossais que vão ali morrer. Os pescadores para poderem pescar tinham de se arrastar por dois ou três quilómetros de sopa de químicos. E ficavam à mercê dos piratas.

Os slums (bairros de lata) impressionaram-me. E vi muitos na vida. Virava-se numa viela e, de repente, abria-se uma enorme clareira de uns milhares de casas de chapa de zinco empoleiradas, onde vivia um inimaginável número de pessoas e animais numa bolha gordurosa num calor viscoso. De um desses slums vi uma menina sair — de uniforme de colégio e lenço branco. Como teria conseguido que o lenço estivesse imaculadamente branco sempre me intrigou.

E escrevi uma história sobre um condutor de riquexó que pedalava das 5 da manhã até às 9 da noite para trazer para casa o equivalente a €1,5, do qual tinha de dar 50 cêntimos ao dono da bicicleta-táxi. E falei da família dele. Depois de publicada a reportagem, um leitor de Leiria não descansou enquanto não descobriu a família via AMI e pagou um ano de estudos à menina. Pensei: “Os portugueses são mesmo gente de bem.” Voltando ao ponto de partida. Se o menino André tivesse nascido em Daca, num slum ou mesmo numa família com melhores situações (a diferença parece pouca), talvez o seu sonho fosse tentar a sorte dele noutro lado, talvez na Europa. Deus tinha de ter outros planos para ele. Quer isto dizer que devemos deixar entrar todos os imigrantes bangladeshianos em Portugal, blábláblá? Não é essa a questão. Não ser aquele que está a ser “mandado para a sua terra por se queixar dos serviços públicos” resulta de uma arbitrariedade do universo. Ninguém fez nada para merecer estar de um lado ou de outro do discurso. Reconhecer algo tão óbvio faria de nós melhores pessoas.

 Luís Pedro Nunes. Revista E - Semanário Expresso, 21 de junho de 2024

 

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