Gonçalo M. Tavares
Guarda algumas frases para os reencontros. Estás mais velho. Estás mais gordo. Estás mais triste. Tinha ideia de que tinhas morrido
Torna-te desatento. Tenta nunca prestar muita atenção a uma imagem ou a uma conversa. O fundamental é mesmo nunca prestares muita atenção a uma pessoa.
Olha sempre para o outro lado.
Treina a preguiça. Aperfeiçoa a preguiça como um pintor obsessivo aperfeiçoa um quadro.
Vê se consegues adormecer até quando o espetáculo é entusiasmante. Não durmas na véspera.
Compra bilhete para ires ver o que já sabes que não gostas para deixares de ter vontade de voltar a sair.
Quando te apresentam uma novidade, fecha os olhos. Faz ruídos com a garganta quando te pedirem silêncio. Diz que estás doente.
Limpa a parte de casa que está escondida. Desarruma a casa antes de chegarem as visitas. Deixa que o teu cão te leve a passear às horas que te são menos propícias.
Desliga o computador depois de enviares um e-mail. Encara o off como aquilo que se deve fazer depois de uma única ação com qualquer máquina. Assume um e-mail como se fosse uma carta antiga. Manda um e-mail por dia. Lê um e-mail por dia. Depois descansa. Se conseguires, faz isso com as mensagens no geral.
Sai à rua com duas palavras: sim, não. Usa muito o não. Usa uma vez por dia o sim. Poupa o sim como se fosse o teu último dinheiro num país estrangeiro.
Quer alguma coisa? Não.
Quando tocarem à campainha finge que não estás.
Mostra só um pouco da tua cabeça à janela, mas logo a seguir baixa-te e não atendas a campainha por nada.
Aparece sem seres convidado.
A meia-noite é uma excelente hora para visitares a casa de um amigo com quem não falas há mais de um ano.
Vai sempre pelo caminho mais longo para teres uma desculpa para chegares atrasado.
No elevador, quando o vizinho te falar sobre as nuvens e sobre a chuva, pergunta-lhe qual a opinião dele sobre a eutanásia.
Quando te fizerem perguntas num exame, fala-lhes do tempo. É preciso levar as conversas de circunstância e de elevador para os exames finais.
Quando te perguntarem algo objetivo, responde falando da tua infância.
Quando te perguntarem sobre a tua infância, diz que não têm nada a ver com isso.
Aproxima-te das pessoas que te causam repulsa e fica por lá perto uns dias.
Calça uns sapatos apertados para teres uma desculpa para ficares em casa no sofá. Dói-me quando caminho, diz, se te perguntarem porque não vais.
Tenta mesmo não ir. Isso é mesmo importante. Não ir nunca.
Vais? Não, fico.
Mas se quiserem que fiques, levanta-te e bate com o dedo indicador da mão direita no pulso como se tivesses um relógio.
Se vires alguém a fazer exercício com pesos e em máquinas de musculação, pergunta-lhe qual o sentido da vida. Se te perguntarem o sentido da vida, insiste que estás atrasado. Substitui o espelho da casa de banho pela fotografia de uma pessoa de que não gostes. Não tomes banho vários dias antes de um primeiro encontro amoroso. Toma banho antes de ires correr. Apanha o avião, se necessário, para dizeres a um artista que não aprecias muito o seu trabalho.
Tem sempre algumas frases guardadas para os reencontros. Estás mais velho. Estás mais gordo. Estás mais triste. Tinha ideia de que tinhas morrido.
Nunca deixes falar os ansiosos. Quando alguém está atrapalhado e não sabe o que dizer, mantém-te em silêncio. Um minuto depois de alguém começar a discursar levanta o braço bem alto e diz que queres fazer uma pergunta. Faz barulhos estranhos num museu. Numa conversa banal interrompe subitamente o diálogo para ires à casa de banho e permanece lá vinte minutos contados no relógio.
Quando a outra pessoa está entusiasmada a contar algo, interrompe, pede desculpa e diz que aquele assunto não te interessa muito.
Não ignores as chamadas dos amigos. Atende e desliga logo a seguir a ouvires a voz deles.
O Andy Warhol dizia que não tinha amigos porque os amigos faziam-no perder muito tempo.
Quando um amigo te diz: sabes o que aconteceu? Responde-lhe que agora não podes falar.
Quando recebes uma mensagem de voz de um amigo a dizer que está desesperado, pede-lhe para enviar mensagem escrita.
Quando te estiveres quase a apaixonar, muda de cidade e de telefone.
Gonçalo M. Tavares. Revista E - Semanário Expresso, 9 de maio de 2024
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