segunda-feira, 10 de junho de 2024

Cantar Camões

 






Tendo sobrevivido a Alcácer-Quibir, D. Sebastião foi detido em Lisboa e encarcerado numa prisão à beira Tejo. Ao longe, ouve um cântico que reconhece vindo de uma embarcação no rio e apercebe-se de que vêm em seu auxílio. Ao fugir na descida da Torre de Belém — a dita prisão — cortam-lhe a corda pela qual se esgueirava, cai e morre afogado nas águas do Tejo. O cúmplice, seu salvador e companheiro de expedição em África, é Luís Vaz de Camões que, alvejado de imediato, foi recolhido por um barco de marinheiros.


Esta é mais uma versão de imaginação romanesca do trágico desaparecimento do nosso “Encoberto” e desde então messiânica figura. “Dom Sébastien, roi de Portugal” é uma peça de teatro escrita pelo prolífico dramaturgo francês Paul Foucher que teve um estrondoso sucesso em Paris em 1838 e que levou à encomenda da sua adaptação a uma ópera por parte do diretor da ópera da cidade. Foi assim que Gaetano Donizetti (1797-1848), entusiasmadíssimo, se dedicou de alma e coração à composição de uma grande ópera histórica muito em voga nesse tempo em Paris. Estreada em 1843, acabaria por ser a sua última obra, pois, em virtude de um processo de demência causada pela sífilis viria a ser internado num asilo. Os ingredientes do enredo são imensos e intricados como sempre: temos uma princesa mourisca, feita escrava e a grande paixão do rei (que, de igual modo encarcerada com D. Sebastião, perece com ele na fuga da Torre de Belém); temos o peso da religião e a presença da Inquisição na figura de um inquisidor-mor; e na cena final com o vislumbre no horizonte da chegada da frota espanhola, antevê-se o desfecho das relações políticas entre Portugal e Espanha com a perda da independência do país. Escrita em primeira mão em francês, foi feita a versão em italiano, “Sebastiano, Re di Portogallo”, e de seguida em alemão. Correu mundo com muito êxito, e chegou também a Lisboa, onde foi estreada, no ano seguinte, em 1844, no antigo Palácio Barcelinhos (hoje o edifício do Centro Comercial dos Armazéns do Chiado), tendo merecido Donizetti um título honorífico, agraciado por D. Maria II.


Data da mesma época o início da composição de “L’Africaine” de Giacomo Meyerbeer (1791-1864), o afamado compositor de grand opera francesa que relata os atribulados episódios da viagem de Vasco da Gama à Índia. Com a colaboração do libretista Eugène Scribe, o mesmo de “Dom Sébastien” que já adaptara ao canto, a peça de teatro de Foucher, deitaram mãos à empreitada em 1837. Contudo, o trabalho interrompido sistematicamente por largos períodos foi terminado apenas dias antes da morte do compositor, vindo a revelar-se a última ópera desta vez de Meyerbeer. Pelo caminho, acrescentaram e modificaram muitas cenas: de acordo com o diário, a 21 de outubro de 1850, Meyerbeer lia, encantado, a primeira tradução em francês de “Os Lusíadas” datada de 1735, na qual se inspirou para recriar o gigante Adamastor e o naufrágio do navio no III ato. A ópera chegou inclusive a mudar de título para “Vasco da Gama”, mas ao ser estreada após a morte do compositor recuperou o incongruente nome inicial de “A Africana”, que remete para a personagem feminina principal, Selika, uma escrava de nome árabe, que nasceu na Índia (e que apaixonada por Vasco de Gama vai morrer de amor depois de o ver partir). Tal como sucedeu com “Dom Sébastien”, “L’Africaine” foi cantada e encenada em inúmeras salas de teatro de ópera, sendo estreada em Lisboa, no Teatro São Carlos, em 1869, para grande gáudio da intelectualidade da época, quatro anos após a estreia parisiense.


Se autores estrangeiros celebraram a nossa portugalidade (e Donizetti de modo peculiar, ao criar de carne e osso a personagem Camões, uma vez que é ‘o’ barítono), muitos compositores portugueses também assim o fizeram. Em 1819, numa manobra de marketing absolutamente comum e aceitável, João Domingos Bomtempo dedicava a Camões uma missa de defuntos para solistas, coro e orquestra, pensando tirar dividendos financeiros para a edição da partitura impressa em Paris. Confessava numa carta: “Compus duas missas, uma das quais de Requiem consagrada à memória de Camões, que, espero, me seja mais produtivo que tantas obras dedicadas a homens ainda vivos, os quais, até ao presente, não me foram de grande utilidade.” Atravessava-se um período de renascimento camoniano com a edição ilustrada de “Os Lusíadas” pelo Morgado de Mateus, em Paris, em 1817, e o “Requiem” foi possivelmente iniciado por esta altura, estreado na cidade francesa em 1818 e executado de novo em Londres em 1819, data em que o autor o dedica “à memória de Camões” para reforçar o ensejo na publicação em papel, que viria a concretizar-se em 1820, em Paris.


Bomtempo, o mais reconhecido compositor português da época, repartiu a vida de pianista virtuoso por estas três cidades, tendo-se instalado definitivamente em Lisboa em 1820. Liberal convicto, com a instauração do regime absolutista de D. Miguel em 1823 viu-se forçado a um exílio na embaixada da Rússia que durou cinco anos. Com o triunfo da causa liberal retomou a vida profissional ativa e foi nomeado por D. Maria II para o cargo de diretor do Conservatório Real de Música, em 1835. Numa tentativa de superar o atraso musical em que o país se encontrava, investe na música instrumental e é estimado como o introdutor da sinfonia em Portugal. Apesar de tudo, o “Requiem” op. 23, “à memória de Camões”, é uma das suas obras-primas.


Cerca de 60 anos depois o esforço de Bomtempo foi compensado por Vianna da Motta, que compõe, em 1894, a “Sinfonia à Pátria”. Considerada a primeira grande sinfonia portuguesa de cariz beethoveniano, mas já influenciada quer pela linguagem do romantismo mais tardio de Liszt e de Wagner quer pelo nacionalismo musical, é uma obra de síntese extraordinária, como se a grande preocupação de Vianna da Motta fosse a de recuperar todo o tempo perdido. A “Sinfonia à Pátria” é inspirada em Camões e três dos quatro andamentos que constituem a obra fazem alusão a versos do poeta. O primeiro de carácter bélico é um grito patriótico: “Dai-me agora um som alto e sublimado,/ Um estilo grandíloquo e corrente;/ Dai-me uma fúria grande e sonorosa,/ E não de agreste avena ou frauta rude,/ Mas de tuba canora e belicosa,/ Que o peito acende, e a cor ao gesto muda.” (“Lusíadas”, I – 4, 5). O andamento lento, expressivo, faz jus ao soneto “Eu cantarei de amor tão docemente”, no qual explora “Pintando mil segredos delicados”, uma infinidade de belas matizes tímbricas. O Scherzo é o único em que Vianna da Motta não parte de Camões, mas faz uso de temas populares, procedimento habitual das correntes nacionalistas. O quarto e último andamento, o mais espetacular, reparte-o em três secções intituladas de “Decadência – Luta – Ressurgimento”. Apesar do peso a que reporta os versos do poema épico em que se inspira, termina com uma mensagem de otimismo e esperança num verdadeiro apelo ao rejuvenescimento da alma lusitana.


Luís de Freitas Branco aventurou-se a escrever um dos géneros musicais mais comuns do tempo de Camões por terras estrangeiras: à imagem do madrigal maneirista italiano que dava uma expressão cantada a versos dos mais eruditos poetas italianos (Petrarca, Tasso), compôs um conjunto de três ciclos de poemas, o primeiro para coro misto a capella e os outros para coros de vozes iguais, num total de 28 peças a que chamou de “Madrigais Camonianos”. Com base em sonetos e redondilhas, musicou por exemplo “Esta cativa” e “Verdes são os campos” para quatro vozes. É sobretudo na área do reportório para canto e piano que muitos compositores puseram em música os versos ritmados, sonantes e cantáveis da lírica de Camões, como Croner de Vasconcelos, Joly Braga Santos, Fernando Lopes Graça e Alexandre Delgado, entre muitos outros. Importa, no entanto, referir ainda a ópera “O Canto da Ocidental Praia” de António Vitorino de Almeida, as “Sinfonias Camonianas” de Ruy Coelho, a “Evocação dos Lusíadas” op. 19 de Vianna da Motta, “Sete Predicações de ‘Os Lusíadas’” de Lopes Graça e “Dece do Ceo” de Eurico Carrapatoso como provas da inesgotabilidade fonte inspiradora camoniana. Para a celebração atual da efeméride, o compositor César Viana escreveu a ópera “O Último Canto – Camões e o Destino” que será estreada no dia 10 de junho, às 17h, no Centro Cultural Olga Cadaval em Sintra (entrada livre).

Mas a vasta e inigualável mestria poética de Camões tem-se prestado para um diálogo fecundo noutras áreas da música dita não clássica. Em 1965, Amália Rodrigues gravou um disco de 45 rotações com música de Alain Oulman, consolidando o trabalho que já havia iniciado com este compositor. Foi o álbum “Amália Canta Luís de Camões”, no qual deu voz a ‘Erros Meus’, ‘Lianor’ (“Descalça vai para a fonte”) e ‘Dura Memória’ e cujas harmonias complexas e densas de Oulman arrancaram definitivamente o fado à raiz popular. A ousadia de trazer para o fado a literatura portuguesa do poeta maior não foi, na época, inteiramente bem acolhida, pois a densidade dramática tanto da música como do texto, em consonância com a interpretação de Amália, não correspondia a um protótipo de fado mais ligeiro e ‘castiço’ que certo público tanto aprecia­va. “Com que Voz”, o álbum bastamente premiado de 1970, reafirmaria o interesse da cantora pela grande poesia, cantando temas de autoria de Oulman com textos de Camões, Alexandre O´Neill, David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Manuel Alegre, entre outros. Mas o tempo tem vindo a provar a absoluta versatilidade deste reportório que é hoje interpretado de múltiplas formas e que tem sido até explorado e improvisado ao piano por Mário Laginha, João Paulo Esteves da Silva ou Júlio Resende, abandonando-se o mais tradicional acompanhamento de guitarra portuguesa e viola dedilhada.


A chamada música de intervenção do pré e do pós-25 de Abril também cantou o poeta quinhentista. José Mário Branco, em plena luta contra o regime e exilado em França, em 1971, lançou o álbum mais emblemático que trouxe para a ribalta a contundente canção ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’ — um grito convocatório de mudança ‘branco-camoniano’! José Afonso, um excelente letrista, além de um compositor notável, promoveu ‘Verdes são os Campos’, uma das mais belas canções portuguesas de sempre. Pegou ainda em ‘Na fonte está Lionor’ e em ‘Aquela cativa’, a intensa canção conhecida por ‘Endechas a Bárbara Escrava’ que já Freitas Branco tinha empregue num madrigal polifónico a quatro vozes.

Aliás, “Na fonte está Lionor” é cantada há quase 500 anos, pois juntamente com ‘Foi-se gastando a esperança’ e ‘Menina dos olhos verdes’ são poemas que aparecem em versões polifónicas de autores anónimos no “Cancioneiro de Paris”, uma das mais tardias coletâneas de canções profanas da segunda metade do séc. XVI; uma outra musicada, mas também de autoria incógnita, é o soneto “Sete anos de pastor Jacob servia”, que consta num manuscrito da Biblioteca Nacional de Madrid. “À pintura que fala” (“Lusíadas”, VIII, 41), continuemos, pois, a cantá-la, a dar-lhe dupla voz por esse mundo fora... quem sabe outros voos, apregoando aos sete ventos o quão Camões espelha a nossa identidade.


Teresa Castanheira. Revista E. Semanário Expresso, 6 de junho de 2024


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