"A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento" - Milan Kundera
Uma prova da presença viva de um escritor é o facto de ser reeditado. Aos 94 anos, Milan Kundera continuava a ver os seus livros publicados no mundo todo. No remoto Portugal, acaba de sair “Um Ocidente Sequestrado – Ou a Tragédia da Europa Central”(D. Quixote, editora de grande parte da sua obra por cá), artigo dado à estampa em “Le Débat”, em 1983, e de seguida traduzido para várias línguas. Ali, ele indagava: “O que é a Europa para um húngaro, um checo ou um polaco? Desde o começo que estas nações pertenciam à parte da Europa enraizada na cristandade romana. Participaram em todas as fases da sua História. A palavra ‘Europa’ não representa para elas um fenómeno geográfico mas sim uma noção espiritual que é sinónimo da palavra ‘Ocidente’. No momento em que a Hungria já não seja Europa, isto é, Ocidente, ela será ejetada para fora do seu próprio destino, para fora da sua própria História: ela perderá a essência mesma da sua identidade.”
Por várias razões, estas linhas possuem a marca da atualidade. Aos 94 anos, Kundera viu um pequeno opúsculo seu com mais de 30 anos de existência a ser republicado por fazer sentido nos dias de hoje. E aos 94 anos, doente há já muito tempo, morreu em Paris, a cidade que adotou. Não é mera coincidência: a obra sobrevive-lhe, e sobreviverá.
Milan Kundera era um escritor com aura. A sua “Insustentável Leveza do Ser”, cuja última edição por cá, com nova tradução, data de 2017, é talvez um daqueles casos em que o livro se torna por inteiro independente do seu autor, ganha poderes autónomos, uma vida própria para além dele. Foi adaptado ao cinema por Philip Kaufman, objeto de teses de doutoramento, longamente debatido, discutido e citado, e a sua história é não apenas a das suas personagens, mas a de um país e do seu destino. Originalmente publicado em 1984, trata-se do quinto romance de Kundera, que antes tinha escrito “A Brincadeira”, a sua estreia, em 1968, durante a Primavera de Praga, e proibida após a vitória das tropas soviéticas -, “A Vida não é Aqui” (1969), “A Valsa do Adeus” (1972) e “O Livro do Riso e do Esquecimento” (1979).
Nascido a 1 de abri de 1929 em Brno, então Checoslováquia, de pai musicólogo e pianista que ensinou música ao filho, estudou literatura e estética, e depois cinema em Praga, e cedo se filiou no Partido Comunista checo, sendo dele expulso em 1950 por ‘atividades antipartidárias’ - seria readmitido em 1956 e de novo expulso em 1970. Talvez por esta relação ambígua, entre a ilusão e a desilusão, com o partido que governava o seu país, ele tenha evitado imprimir um cunho ideológico na sua obra. Na verdade, classificá-la seria limitá-la. Os temas filosóficos mais amplos, concernentes à condição humana, interessavam Kundera mais do que a ideologia ou o realismo político. Ele próprio estabelecera qual era a sua linhagem literária, e esta vinha de longe, do Renascimento – Rabelais, Cervantes –, para desembocar em autores como Denis Diderot, Witold Gombrowicz, os vienenses Robert Musil e Hermann Broch, Martin Heidegger e Franz Kafka, seu conterrâneo.
Professor na cidade onde se formou, Praga, lecionando História do Cinema na Academia de Música e Arte Dramática e no Instituto de Estudos Cinematográficos, após 1968 e a restituição violenta do poder por parte dos soviéticos acabaria por se exilar em França em 1975. Seria a sua pátria de adoção, onde, durante alguns anos, foi docente na Universidade de Rennes, e onde passaria a ser cidadão nacional em 1981, dois anos depois de o seu país de origem lhe retirar a nacionalidade – em 2019, quarenta anos depois, a República Checa devolveu-lha, tinha ele 90 anos.
Nos anos 1990, Kundera publicou “A Imortalidade” (último romance escrito em checo) e “A Identidade”, e em 2000 “A Ignorância”. O último livro seria “A Festa da Insignificância”, de 2014, e sua receção foi, como escreve o “The New York Times”, “morna na melhor das hipóteses”, suscitando em geral críticas negativas. Michiko Kakutani, famosa crítica de literatura daquele jornal, disse que o livro era “uma piada consciente e antecipatória da sua própria superficialidade”.
Kundera já não era o mesmo, embora na verdade o fosse – poucos são os escritores que mantêm a qualidade literária intacta até ao fim. Era e sempre seria o Kundera dos livros anteriores, que numa entrevista dada à “Paris Review” em 1983, pouco tempo depois do lançamento de ”A Insustentável Leveza do Ser”, disse que “para fazer do romance uma iluminação ‘poli-histórica’ da existência, é preciso dominar a técnica da elipse, a arte da condensação. Caso contrário, cai-se na armadilha da extensão infinita”.
E acrescentou, falando do fio que liga os seus romances: “Se eu tivesse escrito sete romances independentes, teria perdido o mais importante. Não teria sido capaz de captar a ‘complexidade da existência humana no mundo moderno’ num único livro. A arte da elipse é absolutamente essencial. Exige que se vá sempre diretamente ao cerne das coisas. A este respeito, penso sempre num compositor checo que admiro apaixonadamente desde a infância: Leoš Janácek”. Como ele, o propósito de Kundera era “livrar o romance do automatismo da técnica”. Além dos romances, da sua produção constam dez livros de ensaios e quatro peças de teatro.
Milan Kundera recebeu vários prémios, entre os quais o Médicis (1973), o Mondello (1978), o Common Wealth (1981), o Jerusalém (1985) e o Independent de Literatura Estrangeira (1991) e Ovid (2011). Em 2020, foi-lhe outorgado o Prémio Kafka. Embora até haja um asteroide – o 7390 Kundera – nomeado em sua homenagem, não venceu o Prémio Nobel da Literatura - foi um dos seus eternos candidatos. Por outro lado, em 2008, recebeu o apoio de onze importantes escritores – como Gabriel García Márquez, J.M. Coetzee, Nadine Gordimer e Orhan Pamuk – na sequência de uma notícia saída no semanário checo “Respekt” segundo a qual ele teria na juventude denunciado um desertor do regime comunista à política secreta, o que Kundera negou. Um ano depois, ele assinou a petição de apoio ao realizador Roman Polanski.
Para Kundera, a arte era um lugar de questionamento, separado da vida quotidiana. Como ele próprio contou num texto publicado em 1988 no “NYT”, intitulado “Palavras-chave, palavras problemáticas, palavras que amo”: “Há cinco anos, um tradutor escandinavo confessou-me que o seu editor tinha hesitado seriamente em avançar com ‘A Valsa do Adeus’: ‘Toda a gente aqui é de esquerda. Não gostam da sua mensagem.’ ‘Que mensagem?’ ‘Não é um romance contra o aborto?’ Claro que não. No fundo, não só sou a favor do aborto, como sou a favor da sua obrigatoriedade! Mesmo assim, fiquei muito contente com este mal-entendido. Tinha sido bem-sucedido como romancista. Consegui manter a ambiguidade moral da situação. Tinha-me mantido fiel à essência do romance como arte: a ironia. E a ironia está-se nas tintas para as mensagens.”
Por várias razões, estas linhas possuem a marca da atualidade. Aos 94 anos, Kundera viu um pequeno opúsculo seu com mais de 30 anos de existência a ser republicado por fazer sentido nos dias de hoje. E aos 94 anos, doente há já muito tempo, morreu em Paris, a cidade que adotou. Não é mera coincidência: a obra sobrevive-lhe, e sobreviverá.
Milan Kundera era um escritor com aura. A sua “Insustentável Leveza do Ser”, cuja última edição por cá, com nova tradução, data de 2017, é talvez um daqueles casos em que o livro se torna por inteiro independente do seu autor, ganha poderes autónomos, uma vida própria para além dele. Foi adaptado ao cinema por Philip Kaufman, objeto de teses de doutoramento, longamente debatido, discutido e citado, e a sua história é não apenas a das suas personagens, mas a de um país e do seu destino. Originalmente publicado em 1984, trata-se do quinto romance de Kundera, que antes tinha escrito “A Brincadeira”, a sua estreia, em 1968, durante a Primavera de Praga, e proibida após a vitória das tropas soviéticas -, “A Vida não é Aqui” (1969), “A Valsa do Adeus” (1972) e “O Livro do Riso e do Esquecimento” (1979).
Nascido a 1 de abri de 1929 em Brno, então Checoslováquia, de pai musicólogo e pianista que ensinou música ao filho, estudou literatura e estética, e depois cinema em Praga, e cedo se filiou no Partido Comunista checo, sendo dele expulso em 1950 por ‘atividades antipartidárias’ - seria readmitido em 1956 e de novo expulso em 1970. Talvez por esta relação ambígua, entre a ilusão e a desilusão, com o partido que governava o seu país, ele tenha evitado imprimir um cunho ideológico na sua obra. Na verdade, classificá-la seria limitá-la. Os temas filosóficos mais amplos, concernentes à condição humana, interessavam Kundera mais do que a ideologia ou o realismo político. Ele próprio estabelecera qual era a sua linhagem literária, e esta vinha de longe, do Renascimento – Rabelais, Cervantes –, para desembocar em autores como Denis Diderot, Witold Gombrowicz, os vienenses Robert Musil e Hermann Broch, Martin Heidegger e Franz Kafka, seu conterrâneo.
Professor na cidade onde se formou, Praga, lecionando História do Cinema na Academia de Música e Arte Dramática e no Instituto de Estudos Cinematográficos, após 1968 e a restituição violenta do poder por parte dos soviéticos acabaria por se exilar em França em 1975. Seria a sua pátria de adoção, onde, durante alguns anos, foi docente na Universidade de Rennes, e onde passaria a ser cidadão nacional em 1981, dois anos depois de o seu país de origem lhe retirar a nacionalidade – em 2019, quarenta anos depois, a República Checa devolveu-lha, tinha ele 90 anos.
Nos anos 1990, Kundera publicou “A Imortalidade” (último romance escrito em checo) e “A Identidade”, e em 2000 “A Ignorância”. O último livro seria “A Festa da Insignificância”, de 2014, e sua receção foi, como escreve o “The New York Times”, “morna na melhor das hipóteses”, suscitando em geral críticas negativas. Michiko Kakutani, famosa crítica de literatura daquele jornal, disse que o livro era “uma piada consciente e antecipatória da sua própria superficialidade”.
Kundera já não era o mesmo, embora na verdade o fosse – poucos são os escritores que mantêm a qualidade literária intacta até ao fim. Era e sempre seria o Kundera dos livros anteriores, que numa entrevista dada à “Paris Review” em 1983, pouco tempo depois do lançamento de ”A Insustentável Leveza do Ser”, disse que “para fazer do romance uma iluminação ‘poli-histórica’ da existência, é preciso dominar a técnica da elipse, a arte da condensação. Caso contrário, cai-se na armadilha da extensão infinita”.
E acrescentou, falando do fio que liga os seus romances: “Se eu tivesse escrito sete romances independentes, teria perdido o mais importante. Não teria sido capaz de captar a ‘complexidade da existência humana no mundo moderno’ num único livro. A arte da elipse é absolutamente essencial. Exige que se vá sempre diretamente ao cerne das coisas. A este respeito, penso sempre num compositor checo que admiro apaixonadamente desde a infância: Leoš Janácek”. Como ele, o propósito de Kundera era “livrar o romance do automatismo da técnica”. Além dos romances, da sua produção constam dez livros de ensaios e quatro peças de teatro.
Milan Kundera recebeu vários prémios, entre os quais o Médicis (1973), o Mondello (1978), o Common Wealth (1981), o Jerusalém (1985) e o Independent de Literatura Estrangeira (1991) e Ovid (2011). Em 2020, foi-lhe outorgado o Prémio Kafka. Embora até haja um asteroide – o 7390 Kundera – nomeado em sua homenagem, não venceu o Prémio Nobel da Literatura - foi um dos seus eternos candidatos. Por outro lado, em 2008, recebeu o apoio de onze importantes escritores – como Gabriel García Márquez, J.M. Coetzee, Nadine Gordimer e Orhan Pamuk – na sequência de uma notícia saída no semanário checo “Respekt” segundo a qual ele teria na juventude denunciado um desertor do regime comunista à política secreta, o que Kundera negou. Um ano depois, ele assinou a petição de apoio ao realizador Roman Polanski.
Para Kundera, a arte era um lugar de questionamento, separado da vida quotidiana. Como ele próprio contou num texto publicado em 1988 no “NYT”, intitulado “Palavras-chave, palavras problemáticas, palavras que amo”: “Há cinco anos, um tradutor escandinavo confessou-me que o seu editor tinha hesitado seriamente em avançar com ‘A Valsa do Adeus’: ‘Toda a gente aqui é de esquerda. Não gostam da sua mensagem.’ ‘Que mensagem?’ ‘Não é um romance contra o aborto?’ Claro que não. No fundo, não só sou a favor do aborto, como sou a favor da sua obrigatoriedade! Mesmo assim, fiquei muito contente com este mal-entendido. Tinha sido bem-sucedido como romancista. Consegui manter a ambiguidade moral da situação. Tinha-me mantido fiel à essência do romance como arte: a ironia. E a ironia está-se nas tintas para as mensagens.”
Luciana Leiderfarb. Expresso, 12 de julho de 2023
👉 O romance A insustentável leveza do ser está disponível na Biblioteca.
Sem comentários:
Enviar um comentário