HÁ DESVIOS DE ORTOGRAFIA BONS E MAUS — OS MAUS ACONTECEM A TODOS E ABORRECEM, OS BONS ATIVAM AS MOLÉCULAS PENSANTES
Recebi de uma imobiliária — exatamente isso, de uma imobiliária — a mensagem de que o preço de uma certa casa era bem acessível porque tinha lá dentro um “inclino”. Percebi que não era um abuso poético-geométrico do corretor automático quando em várias mensagens se falava dos “inclinos”.
1.
Pensei logo no inclino enquanto ser curvado a 45 graus, sempre numa tensão entre tentar manter as costas direitas e uma certa atração do solo e dessa constante e discreta gravidade.
Os inclinos como seres quase mitológicos, de uma mitologia urbana moderna; humanos bípedes que devido ao peso e preço das rendas começam a perder o seu bipedismo ereto e a ganhar uma curvatura acentuada, provavelmente efeito de se dobrarem com demasiada dor para colocarem o envelope com a renda debaixo da porta do senhorio.
Vejo já esses seres, os inclinos, como sujeitos, entre o chão e o teto, vivendo duramente quase numa diagonal em relação ao solo.
Continuando no devaneio ortográfico-poético, penso que também poderiam ser elementos pertencentes a uma nova profissão — profissão de fazer inclinar as coisas. Eu sou inclino: inclino um copo, um quadro, uma pessoa, enfim, se necessário, inclino até uma relação amorosa em direção ao abismo.
Há desvios de ortografia bons e maus — os maus acontecem a todos e aborrecem, os bons ativam as moléculas pensantes.
Temos de proteger os inclinos.
Gonçalo M. Tavares. Revista E. Expresso, Semanário#2644, de 30 de junho de 2023
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