sexta-feira, 14 de julho de 2023

Notas sobre vacas e outros assuntos incontornáveis

 

 



A VERDADE DA FANTASIA

A verdade é uma, enquanto a ilusão é prolixa, e as suas formas e metamorfoses são incontáveis. A exatidão esgota-se em si mesma, mas a fantasia não tem quaisquer limites. Mais: a mentira, a criatividade, a distorção, a deformação, a imaginação, os aleijados, a inventividade, preenchem todo o tecido concebido e cercam o núcleo da solidez e da verdade ao ponto de poderem até ocupar o seu espaço. A ilusão pode ser absolutamente subjetiva, tal como pode ser lacónica e precisa, mas a verdade não admite ambiguidade. Respira exatidão e, sem ela, morre asfixiada.

QUANDO OS HUMANOS FALAVAM

 No tempo em que os humanos falavam, já passou muito tempo desde então, tudo deveria ter sido mais pacífico. Agora, a sua voz foi substituída pelo lucro e interesses geopolíticos (outra maneira de tratar do lucro). Os homens não falam, fazem contas.

RARIDADES

A morte, a violência, o medo, são uma constante. O amor é uma doença da morte, uma exceção, como uma planta que floresce no deserto. Matamos para comer, matamos a andar, a respirar, os nossos glóbulos brancos matam os intrusos, os estrangeiros, e o amor no meio disto é raro. A morte é uma toalha de tédio, enfadonha, e só foge desse registo quando é espetacularmente violenta. Uma erva pisada, milhões de microorganismos mortos, os cabelos que caem, os dentes que se vão, os vidros que se partem, as casas que ruem lentamente, as ideias descartadas, a perda da vista, as solas esburacadas, nada disso tem direito a ser notícia. Uma bomba num carro, um acidente de avião, isso sai da banalidade da omnipresença da morte para a iluminar com o foco da atenção. E o amor, no meio disto, é raro. Seja na rotina e na banalidade, seja na explosão de violência, a morte está sempre presente e o amor, no meio dela, é raro.

MAR

Nos Açores (estou a escrever no Faial) sinto que está tudo cheio de oceano.

VACAS (RELEMBRO QUE ESTOU A ESCREVER NA HORTA, FAIAL)

Há uma história passada no Camboja (cito de cor) em que um homem depois de ficar incapacitado — uma perna amputada por causa de uma mina — é obrigado a voltar para o campo. Oferecem-lhe uma vaca, pois poderia ordenhá-la sentado, voltando assim a sentir-se útil. A depressão causada pelo seu estado foi assim mitigada, sem terapia convencional ou medicação, simplesmente com o uso de uma vaca.

Gertrude Stein gostava de intervalar a escrita com a contemplação de pedras e de vacas.

Junto à praia do Almoxarife, decidi fotografar uma vaca, que, mal me viu com a câmara, correu para mim a pedir festas. Encostou a cabeça a um pequeno muro de pedra, que me dava pelos joelhos, fechou os olhos. A entrega é desarmante. Não será irrelevante afirmar que essa disponibilidade social me fez muito bem.

Há aqui todo um potencial inexplorado que vai muito para lá dos laticínios e da indústria carne.

DIÁRIO DE UM APICULTOR: ONDE LARS GUSTAFSSON DESCREVE A FELICIDADE COM INEGÁVEL CLAREZA

“Curiosamente, pus-me a pensar no paraíso. Também comecei a lixar a porta da rua, precisa de ser pintada de novo porque a tinta estalou durante o Inverno. Descobri por acaso três baldes de tinta num dos armários da cozinha, devem lá estar desde os anos 60, desde que casei.

O paraíso oferece problemas interessantes. O que é um estado de felicidade que se prolonga indefinidamente?

Pensamos naturalmente no orgasmo. Um imenso orgasmo de felicidade que nos surpreende por nunca acabar. Prolonga-se, minuto após minuto, hora após hora. É tão intenso, tão incandescente, que percebemos que algo de totalmente inaudito está a acontecer. Começa-se até a desejar um pequeno momento para respirar, nem que seja uma fração de segundo para poder pensar, mas aquele prazer inaudito prolonga-se horas a fio, sem se deixar convencer a parar…

O paraíso? Acabei de experimentar isto tudo.

O paraíso deve ser quando todas as dores terminam. Mas isso significa então que enquanto não temos dores, vivemos no paraíso! Sem nos darmos conta!

Os felizes e os infelizes vivem no mesmo mundo e não o sabem!”

 

Afonso Cruz. Jornal de Letras, 8 de abril de 2022


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