segunda-feira, 3 de julho de 2023

Uma garfada de ingredientes a mais

 

 

 

 

 

 

OS ALIMENTOS ULTRAPROCESSADOS ENTRARAM SORRATEIRAMENTE NO CESTO DAS COMPRAS DE SUPERMERCADO, SEM NOTIFICAÇÃO DE PERIGO. EM PORTUGAL, REPRESENTAM JÁ UM QUINTO DO QUE COMEMOS

 

Texto:  Joana Ascensão   Ilustração: Cristiano Salgado

 

Na indecisão sobre como começar este texto, aconteceu um levantar da cadeira e uma ida até à máquina dos snacks da redação. Por entre o vidro, vemos cinco qualidades de pacotes de bolachas, seis tipos de chocolates, uma barra de cereais, rebuçados e pastilhas, batatas fritas, croissants mistos, duas qualidades de bolos, um hambúrguer de frango e cinco tipos de sanduíches em pão fabricado para durar semanas, além de cinco sumos diferentes, dois refrigerantes, pacotes de leite com chocolate e garrafas de água. Não é preciso verificar os rótulos para assumir que, de todas as opções de snacks, só com uma garrafa de água conseguiríamos escapar a um alimento ultraprocessado. E, de repente, esta refrigeradora de pouco mais de um metro quadrado materializa a validação do que precisávamos: os alimentos ultraprocessados já fazem parte da vida moderna. Entraram nela de forma sorrateira e sem aviso de perigo. São convenientes, baratos, muito saborosos, fortemente publicitados e lucrativos, mas acarretam também um lado negro que tendemos a ignorar.

Se quisermos simplificar uma definição para estes alimentos do século XXI, podemos dizer que contêm muitos ingredientes extra que não teriam se fossem feitos em casa. “Quando fazemos um bolo em casa, do que é que precisamos? Se o comprarmos embalado, que ingredientes ele tem a mais?”, problematiza a Sara Rodrigues, professora e investigadora na Faculdade de Nutrição da Universidade do Porto. Intensificadores de sabor, conservantes, corantes e aromatizantes modificam os ingredientes dos alimentos, podendo até fazer com que alguns alimentos “se calhar já nem se possam considerar os mesmos”, garante Sara Rodrigues. Isto é algo que não se passa com o processamento, em técnicas como salgar o bacalhau, transformar leite em iogurte ou a fruta em compotas. Ao contrário dos alimentos processados, que “desde sempre têm sido úteis ao homem e à sua evolução”, diz, nos produtos ultraprocessados “a matriz é, algumas vezes, completamente destruída e transforma o alimento noutra coisa”. Pensemos em salsichas, em tiras fritas de milho ou em pó de ananás para fazer sumo e no caminho que fazem desde a carne, o milho e o ananás ao natural. Esta comida aguenta mais tempo na prateleira, tem mais sabor e é associada a altos teores de gordura, de açúcar e de sal. Por norma, está também associada a um hiperembalamento, como a combinação das embalagens de dentro e embalagens de fora nas bolachas preparadas para snacks do meio da manhã, que acabam a ser prejudiciais à sustentabilidade do planeta e cujas embalagens podem chegar a custar mais aos produtores do que o fabrico do próprio produto.

Pela rentabilidade — que permite à indústria apostar tanto ou mais em publicidade do que na produção dos próprios alimentos —, mas também pela comodidade que proporcionam ao consumidor, têm escalado nas prateleiras dos supermercados nos últimos anos. Em Portugal, entre 1990 e 2015, os alimentos ultraprocessados passaram a ocupar seis vezes mais dos carrinhos de compras. Dados de um inquérito feito pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) de cinco em cinco anos evidenciam um aumento consistente, até 2005, destes alimentos pelas famílias (ver gráfico). A partir de então os dados passaram a não ser disponibilizados de forma a que os investigadores consigam trabalhá-los, lamenta Sara Rodrigues. Passaram-se quase 20 anos. Só em 2015, por conta de um outro estudo, o Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IANAF), foi possível atualizá-los para o valor mais recente: 24,4% dos alimentos consumidos pelos portugueses são ultraprocessados. Ainda assim, este número está desatualizado quase uma década. Avaliando por esta ‘fotografia’ do momento, os principais ‘calcanhares de Aquiles’ dos portugueses são os refrigerantes, os sumos açucarados e os iogurtes com aromas, que se incluem neste grupo pela presença de aromatizantes. Portugal encontra-se ligeiramente abaixo da média europeia no que ao consumo destes produtos diz respeito. Num somatório recolhido e publicado pelo “European Journal of Nutrition”, Itália é o país da Europa em que o peso destes alimentos é menor, seguido da Roménia e da Hungria. No ponto oposto estão a Suécia, o Reino Unido e a Alemanha, países onde os ultraprocessados rondam os dois em cada cinco produtos consumidos.

O CORPO É QUE PAGA

Foi a partir dos anos 80 que o cientista brasileiro Carlos Monteiro, da Universidade de São Paulo, começou a evidenciar um paradoxo. As pessoas compravam cada vez menos açúcar e, contudo, tendiam a consumir mais doces, por conta dos produtos açucarados prontos a comer, desde bolos empacotados até cereais de pequeno-almoço. Os casos de diabetes tipo 2 disparavam, entre outras doenças crónicas associadas à alimentação rica em açúcar, sal e gorduras — e pouco nutritiva. Desde as observações do fundador deste conceito de alimentos ultraprocessados, tem-se multiplicado a investigação que pretende relacioná-los a uma degradação da saúde. “Em Portugal, segundo os dados que temos, quem consome mais ultraprocessados é quem tem piores indicadores de saúde”, refere sem pestanejar a investigadora Sara Rodrigues. Também lá fora as conclusões são idênticas. Num estudo americano que seguiu, durante duas semanas, um grupo de pessoas que pôde escolher o que comer entre alimentos não ultraprocessados e outro que fez as suas escolhas apenas entre alimentos ultraprocessados, verificou-se que o primeiro grupo diminuiu de peso enquanto o segundo aumentou de peso. Estas conclusões são especialmente importantes se pensarmos que em alguns países, incluindo Portugal, o grupo das crianças é aquele com mais altos consumos de alimentação ultraprocessada porque muitos dos produtos vendidos pelo marketing como sendo para a sua faixa etária têm constituintes a mais, como leite em pó, papas ou cereais de pequeno-almoço. A investigadora ouvida pelo Expresso considera que “o marketing alimentar dirigido às crianças deve ser mais regulado, porque é uma loucura. Alguém dizia que é como ter a criança fechada numa sala com um vendedor formado em Oxford. Ele vende-lhe tudo o que quiser. Os Ministérios da Agricultura e da Saúde não têm o mesmo dinheiro para competir com a indústria alimentar e vender maçãs”.

 E - Revista Expresso, Semanário#2644, de 30 de junho de 2023

 

 

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