Saramago | O despertar da palavra, por Horácio Costa
José Saramago fala sobre o seu período de formação e sobre a poética de romances cuja oralidade desperta a música adormecida da palavra escrita.
Extrato
"Então,
o que aconteceu? Na altura da página 24, 25 [do romance Levantado do
Chão], estava indo bem e por isso eu não estava a gostar. E sem
perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores
hoje sabem que eu escrevo: sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de
todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí. O que aconteceu? Não
sei explicar. Ou, então, tenho uma explicação: se eu estivesse a escrever um
romance urbano, um romance com um tema qualquer sobre Lisboa, com personagens
de Lisboa, isso não aconteceria. E tenho a certeza de que hoje estaria a
escrever esses romances como toda a gente, talvez bons, talvez não tão bons,
mas estaria a acatar respeitosamente toda a convenção do que se chama
escritura. Mas alguma coisa aconteceu aí: eu tinha estado com essa gente,
ouvindo, escutando-os, estavam a contar-me as suas vidas, o que tinha
acontecido com eles. Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu
percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no
lugar deles, só que agora narrando-lhes o que eles me haviam narrado. Eu estava
a devolver pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu tinha
recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz,
penso que está aqui. Não estou certo de que seja a única, mas com certeza, essa
conta."
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