Se estiver a ler esta crónica num café rodeado de vizinhos, tenha a noção de uma coisa: você é muito feliz, tenha ou não noção disso.
É uma ideia, ou talvez seja um suspiro nostálgico: a sociedade democrática e liberal foi criada nos cafés. O café, como sítio e como bebida, é fundamental na história da liberdade tal como a concebemos desde o século XVIII. Beber uma bica, um estimulante cerebral natural, num espaço público e de conversa é, em si mesmo, a imagem perfeita do cidadão ou do vizinho atento ao que se passa à sua volta. Ao contrário da taberna, onde as pessoas bebem para cair num torpor, o café desperta, e, nesse sentido, é impossível pensarmos nas conquistas democráticas e liberais sem esta vivacidade cafeinada. O café é um autor do mundo liberal, como Tocqueville ou Hamilton; representa (ou representava) um centro liberal e cosmopolita entre a rua revolucionária, à sua esquerda, e do trono reacionário, à sua direita.
Um mundo perdido?
“Café Concerto”, de Édouard Manet
Ainda sou desse tempo. Nos tempos da faculdade, por exemplo, ia ao café sem saber quem lá estava e, por arrasto, sem saber qual seria o tema da conversa daquela tarde ou noite; mas falava, argumentava e aprendia, porque os temas da conversa podiam não ser os meus, tinha de acompanhar os outros com as suas paixões e interesses: cinema finlandês, poesia húngara, romance brasileiro, futebol americano, rock urbano depressivo, música gótica, navios japoneses da Segunda Guerra, música galega, Olivença. A par do café, havia sempre jornais e revistas. Quando folheamos a imprensa, não estamos apenas no nosso algoritmo, vemos e lemos coisas fora da nossa caixa. É por isso que aqui em casa, na era clean do ecrã, nós continuamos a espalhar jornais e revistas na mesa e no sofá. O ecrã é um espelho narcísico, um jornal é uma janela para o mundo; o ecrã é uma selfie, o jornal é uma boa foto de algo à nossa volta.
No início da internet, os blogues ainda eram emanações do espírito dos cafés. Havia um sentimento de proximidade mesmo com os nossos adversários. Aliás, era engraçado ver pessoas de esquerda a casar com pessoas de direita. Mas algo de facto mudou com o Facebook e o Twitter. Tudo foi militarizado. Tudo foi capitalizado. O tal algoritmo entrou em jogo e começou a desenhar para cada um de nós uma bolha pessoal, intransmissível, intolerante e sem curiosidade sobre o mundo.
Como dizia há dias Adam Gopnik na “New Yorker”, este mundo de convívio e discussão, que esteve na base da sociedade democrática e liberal, está de facto em risco. O café é um dos corpos intermédios da sociedade que misturam as pessoas, e parece que hoje em dia as pessoas recusam a mistura em nome da sua alegada pureza. Nós íamos aos cafés para falarmos ao vivo com outras pessoas; hoje as pessoas vão para os cafés precisamente para não falar com as pessoas que lá estão, fecham-se nos seus portáteis e fones e falam com amigos escolhidos à distância e sobre os seus temas. Vivem em circuito fechado: só falam com os mesmos de sempre, os da sua tribo, e só falam sobre os seus temas e da forma que reconhecem. Porque se aparece alguém a falar do tema x através de uma lente nova, ui, ui, é logo um lobo fascista ou um maricas wokista. Voltamos sempre ao mesmo: se tudo é controlado, se cada um controla cada detalhe da sua vida através do telemóvel, então estamos a criar pessoas que não compreendem o acaso, o risco, a liberdade e a curiosidade sobre o mundo e sobre os outros.
Se estiver a ler esta crónica num café rodeado de vizinhos, tenha a noção de uma coisa: você é muito feliz, tenha ou não noção disso.
Herique Matoso. Jornal Expresso, 13 março 2025
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