sábado, 18 de maio de 2024

A sós ou em grupo, cresce o gosto pelos puzzles em Portugal

 


Quebra Cabeças, Quebra-Cabeça, Navios


A comunidade de puzzles em Portugal está a crescer. A atividade que pode ser individual ou social, mas que é sempre analógica, acessível e meditativa, tem comprovados benefícios para a saúde mental. Na vida e nos puzzles, interessa mais a viagem do que o destino.




Um puzzle exclusivamente criado para a competição é revelado apenas no soar da partida às seis centenas de participantes do Campeonato Mundial de Puzzle, na cidade espanhola de Valladolid. Individualmente, a pares ou em equipas, os atletas apressam-se a abrir as caixas, dispor as peças viradas para cima e juntá-las o mais rapidamente possível. A cada jogador que completa o seu puzzle ouvem-se gritos e palmas de ânimo. Mesmo quem não se qualifica sai feliz: regressa a casa com novos amigos e pelo menos um puzzle novo.

O jovem catalão Alejandro Clemente Léon detém há dois anos seguidos o título de campeão de puzzles nacional e mundial. No último campeonato organizado pela Federação Mundial de Puzzles e Quebra-Cabeças (WJPF), sediada em Valladolid, Alejandro completou uma imagem da Sicília de 500 peças em 37,59 minutos. No torneio de pares, ficou em segundo lugar e, no de grupos, a sua equipa foi a única a terminar dois puzzles de mil peças em três horas. Encaixaram a última peça cinco minutos antes de o tempo definido acabar, para delírio da audiência.

Os atletas da casa são os mais temidos (e os mais assíduos) nestes campeonatos mundiais, que acontecem desde 2019 — vão apenas na terceira edição devido à pausa pandémica. Partilharam o pódio com Alejandro, uma norueguesa e uma checa — países que, juntamente com os EUA, lideram as tabelas junto dos espanhóis. O país vizinho é muito experienciado nos puzzles, com eventos a acontecer quase todos os fins de semana. Já no caso português, são ainda poucos os que competem, mas cada vez mais os que admitem os puzzles como hobby de eleição.

No mundial de setembro de 2023, estiveram presentes 27 portugueses; no ano anterior, eram apenas cinco. Dulce Pereira foi a pioneira, em 2014, a cruzar a fronteira para participar num torneio. Desde então, o gosto foi crescendo e, com ele, a comunidade. Em março deste ano, a técnica de recursos humanos cofundou a Associação Portuguesa de Puzzles (APPZ), que vai organizar a sua primeira competição nacional no final de junho. “O nosso desejo é ter este campeonato todos os anos e tornar o puzzle uma modalidade desportiva, como é o xadrez”, revela Dulce.

UM HÁBITO DE PANDEMIA

O gosto pelos puzzles “começou muito cedo” para Dulce Pereira: “Apareceu um lá em casa e desde aí percebi que os adorava.” O gosto está “incutido” nos dois filhos pequenos, com quem faz puzzles “todos os dias”. Conta que, depois de se aventurar nos eventos espanhóis, foi convidada pela WJPF para ser a sua representante portuguesa. O confinamento foi “o pontapé de saída para a expansão da comunidade e a criação da associação”, afiliada à federação internacional. A competição da APPZ conta já com uma centena de inscrições, das quais se espera que se apurem “os melhores atletas para integrarem o campeonato mundial”, sublinha.

Seja a fazer puzzles em contrarrelógio nas competições, ou como passatempo descansado em casa, a comunidade de aficionados pelos quebra-cabeças cresceu globalmente nos anos da pandemia. A par de outros que, fechados em casa e obrigados ao teletrabalho, descobriram tranquilidade em novelos de tricô ou fermentos de padeiro, milhares renderam-se às peças de cartão. [...] Segundo Cesaltina Marques da Silva, gerente da Papagaio Sem Penas, que desde 1993 vende puzzles em Portugal, a loja assistiu a um “grande pico de vendas na covid” e desde então “houve muita gente que nunca tinha feito puzzles e ficou com o bichinho”.

Da pandemia proliferaram também as competições virtuais de puzzles, geralmente organizados por eliminatórias. [...] 

 

Ainda, Itens, Coisas, Quebra-Cabeça




Os puzzles ativam oito funções cognitivas diferentes ao mesmo tempo explica o neurologista Patrick Fissler


Quando estamos a fazer um puzzle e pegamos numa peça, a informação passa pelos olhos até ao cérebro, onde processamos, ao mesmo tempo, a imagem que está na peça e o sítio onde a pousamos. Esta dupla informação tem que ser memorizada, para podermos ir buscar aquela peça quando reconhecermos o espaço que ocupa no puzzle por completar. “Esta é uma tarefa muito difícil para o cérebro. Os puzzles ativam oito funções cognitivas diferentes ao mesmo tempo”, explica, numa entrevista, o neurologista Patrick Fissler.

Sediado na Suíça, dedica-se ao estudo da promoção da saúde cognitiva ao longo da vida. Algumas das suas investigações procuraram enriquecer a ciência sobre os benefícios da prática de atividades de lazer, especialmente os puzzles, na prevenção de perturbações neurocognitivas como o Alzheimer e a demência. Num estudo de 2018 com 100 pessoas com idades acima dos 50 anos, Fissler e a sua equipa concluíram que “o jogo do puzzle envolve fortemente múltiplas capacidades cognitivas” e que a sua prática “é um potencial fator de proteção contra o envelhecimento cognitivo”. No entanto, os benefícios verificaram-se apenas numa prática recorrente e a longo prazo, “como componente de um estilo de vida físico, social e cognitivamente ativo”.

É também uma atividade utilizada na terapia ocupacional, nomeadamente com crianças, por promover a motricidade fina, o processamento visual e a coordenação óculo-motora, mas também a concentração, a autonomia e a regulação emocional (gerir a frustração de não encontrar a peça certa, ou a paciência para completar a imagem, por exemplo). “O puzzle é levar a cabeça ao ginásio mental”, resume Dulce Pereira. “Dado o contexto social em que vivemos, com as crianças cada vez mais agarradas a conteúdos digitais, é um ótimo jogo para direcionarmos a atenção das crianças para aquilo que dá um bocadinho de trabalho e que nos desafia. Interessa que a criança está com os seus adultos de referência a participar num momento lúdico e a desenvolver competências cognitivas, mentais e sensoriais. Estamos a falar de tempo de qualidade”, explica a presidente da APPZ. “Um dos objetivos máximos da associação é potenciar o desenvolvimento destas capacidades, sobretudo nas idades mais novas”. Além das potencialidades para a saúde cognitiva, os puzzles oferecem refúgios de tranquilidade perante rotinas agitadas. A sensação de mergulhar num puzzle é semelhante à de uma meditação, na medida em que o foco na atividade relaxa corpo e mente e desacelera o ritmo cardíaco e a pressão arterial, reduzindo o stresse. A libertação de dopamina a cada peça encaixada faz-nos sentir realizados, em controlo. A imagem final é só a cereja no topo do bolo. “O puzzle é um jogo que tem esta característica maravilhosa que não escolhe idades, cor, nada”, repara Dulce. “Qualquer pessoa se pode sentar e fazer um puzzle.” 

 Inês Loureiro Pinto. E-Revista, Semanário Expresso, 16 de maio de 2024


Sabia que...

O primeiro puzzle foi criado pelo gravurista e cartógrafo britânico John Spilsbury, por volta de 1766, um mapa dissecado da Europa em madeira para ajudar crianças a aprender geografia. O termo “puzzle” só seria usado pela primeira vez em 1906.


Sem comentários: