… aqui chamadas magnórios.
— José Saramago, Viagem a Portugal
Lembrei-me há dias de uma história frequentemente contada nos jantares da minha família e que já foi transmitida a quatro gerações. A ação decorre no final dos anos 60 do século passado, na casa da minha infância, na Rua de Santa Catarina, no Porto. As protagonistas são as minhas avós. A minha avó materna morou no Porto, desde finais dos anos 40 do século XX, até falecer, em 1986. A minha avó paterna deixou-nos em 2002 e morou toda a vida em Aveiras de Baixo. Provavelmente preocupada com o risco de o neto poder vir a padecer da angústia que afecta o homem pós-industrial em pleno capitalismo tardio, transformando-se num perigoso urbano-depressivo, a mãe do meu pai perguntou à comadre: “então não tem aqui uma horta, um bocadinho de verde, umas arvorezinhas de fruto?”. “Temos um quintal”, elucidou a minha avó materna, acrescentando: “há framboesas e magnórios”. “Magnórios?”, perguntou a minha avó paterna. “Magnórios!”, respondeu-lhe assertivamente a comadre. “Não conheço”, admitiu a minha avó paterna, e, minutos volvidos, perante a árvore e influenciada pelo profundo conhecimento da flora ribatejana, exclamou: “Mas isto é uma nespereira, esta árvore dá nêsperas!”. A minha avó materna retorquiu: “Isso é lá em baixo: cá em cima, dá magnórios”.
Trago aqui este relato, a propósito de O português de Portugal está em risco?, artigo de Rodrigo Tavares, recentemente publicado no Expresso. O autor escreve que “a maioria dos portugueses na sala não entendeu a interpolação do brasileiro”, acerca de um ‘xará’ (tupi-guarani para ’homónimo’), pronunciado em Portugal por um político brasileiro. Daí até à síntese “o português falado no Brasil absorve, enriquecendo-se, o falado em Portugal segrega, murchando-se” foi um pequeno passo para Tavares, mas um passo francamente exagerado para a humanidade. No texto em causa, admito, Tavares faz um bom apanhado das principais características lexicais, morfossintáticas e fonológicas do português do Brasil que o diferenciam do português europeu (Tavares chama-lhe “português de Portugal”, mas a designação nos meios académicos é “português europeu”). Sou insuspeito, uma vez que me dediquei a um exercício muito semelhante (cf. PÚBLICO, 16/11/2022), mas perante um público especializado e crítico e sem cometer o pecado de Tavares.
É errado e, pior, enganador confundir com “riqueza” a quantidade (e nela integrar implicitamente a atualidade e, por arrasto, a qualidade) das fontes de duas realidades linguísticas com processos, épocas e geografias diferentes: por um lado, o português europeu, com muito mais anos do que os erradamente atribuídos por alguns políticos (e alguns, poucos, linguistas em missão política), que limitam a génese à data de um dos três testamentos de D. Afonso II (o de 1214), por outro, o português do Brasil, variante nascida há 523 anos, exatamente no momento (infelizmente, não registado) da primeira palavra pronunciada em português pelo primeiro falante de língua portuguesa da armada de Pedro Álvares Cabral a radicar-se nesse preciso momento no Brasil.
Neste parágrafo, apresento duas citações integrais do artigo de Tavares, pois trata-se de texto que merece ser lido pormenorizadamente. Tavares diz-nos: “São milhares as palavras de origem indígena usadas diariamente no Brasil e desconhecidas em Portugal. Os povos originários brasileiros falam cerca de 300 línguas diferentes. O mesmo acontece com milhares de palavras de origem africana, alemã, espanhola, japonesa e italiana levadas por imigrantes e escravizados”. O contraponto chega-nos pouco depois, como o silvo de uma seta vinda das profundezas da lusofonia: “Existem centenas de palavras de origem africana e árabe integradas no português de Portugal ao longo dos últimos mil anos. Mas nas últimas décadas, com exceção [sic] da assimilação de novos vocábulos tecnológicos de língua inglesa, o nosso idioma português deixou de ter capacidade de capturar pela língua as novas dinâmicas sociais e culturais associadas, por exemplo, à emigração e à imigração. Os emigrantes que regressam não deixam marcas na língua. Os imigrantes que nos procuram criam bolhas comunicacionais“.
A permeabilidade de determinado sistema linguístico a formas de outros sistemas linguísticos depende da necessidade de absorção de parte(s) desse sistema ou da manifesta atractividade do todo ou de parte do sistema estrangeiro. Respectivamente, a necessidade permite que se colmatem lacunas e a atractividade admite a coexistência com formas correntes. Isto, obviamente, em condições ideais, sem interferências externas. Por exemplo, se carta e batimento, palavras da emigração portuguesa em países europeus francófonos, não entraram até hoje no léxico português europeu, foi porque os falantes em Portugal não consideraram oportuno substituir os existentes cartão (de débito/crédito) e edifício ou entenderam desnecessário guardá-los para melhores dias.
Como vimos supra, Tavares refere que são “milhares as palavras de origem indígena usadas diariamente no Brasil e desconhecidas em Portugal”, acrescentando “milhares de palavras de origem africana, alemã, espanhola, japonesa e italiana levadas por imigrantes e escravizados”. No entanto, admite: “quase todas as semanas aprendo palavras novas documentadas em dicionários brasileiros e ausentes dos portugueses”. A minha pergunta é: e essas palavras (milhares) em concreto ou palavras atualmente disponíveis, em condições semelhantes, no território português serão úteis para os falantes de português europeu? Não estaremos a falar de palavras despiciendas em termos comunicativos e culturais e que, na realidade do português europeu, só serviriam para acrescentar colorido e dinamismo para inglês ver? Fica a pergunta.
O português europeu não é melhor do que o português do Brasil. O português do Brasil não é melhor do que o português europeu. São tão-somente diferentes.
Voltando ao relato inicial, o português do Porto não é melhor do que o de Lisboa, só porque o segundo não tem magnórios e o primeiro tem magnórios e sabe o que são nêsperas. Há razões para o português do Porto ter magnórios e para o português de Lisboa os dispensar. Nem o português do Brasil deixa de ser uma excelente língua, apesar de nem o Houaiss nem o VOLP da Academia Brasileira de Letras consagrarem ‘magnório’ (o VOLP regista ‘magnólio’), embora ele exista na melhor literatura portuguesa do século XX (cf. epígrafe) e no Morais e no Machado que tenho aqui no escritório.
Enfim, o português europeu não é melhor do que o português do Brasil. O português do Brasil não é melhor do que o português europeu. São tão-somente diferentes. O “poxa, já estou briaco com o chope”, aduzido por Tavares, servirá como medida descritiva, mas jamais poderá corresponder a uma medida qualificativa. Como um putativo “perdi a carta de crédito quando estava no batimento” nunca poderá corresponder a exemplo de valorização do português europeu, mas a uma mera descrição. No meio disto tudo, a única coisa que não é boa é a abordagem de Tavares. As línguas dispensam orientações. Desconheço (e, com o devido respeito, são-me indiferentes) as razões para tanto entusiasmo e fascínio por uma norma e tanto desprezo por outra, mas convém sempre refrear os ânimos e, nestas coisas, a prudência recomenda alguma distância.
As línguas pertencem aos falantes (quer nativos, quer como língua estrangeira) e são estudadas por linguistas. Quando políticos ou tecnocratas dedicam tempo a análises com aroma linguístico, convém ter alguma cautela. As línguas são aquilo que são e não aquilo que políticos, tecnocratas e até, infelizmente, alguns linguistas desejariam que fossem. Convém estar-se muito atento aos perigos, nomeadamente aos provenientes de quem propõe mudanças artificiais (ou seja, independentes dos actos de fala espontâneos dos falantes dessas línguas), seja por causa de acordos ortográficos, de modas políticas ou predilecções pessoais. A língua portuguesa estará sempre em risco, enquanto políticos e tecnocratas andarem a pairar sobre ela. O Acordo Ortográfico de 1990 serviu-nos de péssimo exemplo. Não repitamos o erro.
N.B.: Por um lado, Óscar Lopes (Gramática simbólica do português: um esboço, 1971) indica que “«magnório» evoca a regionalidade nortenha popular do falante, ao passo que «nêspera» é um termo meridional ou então conotativamente não-marcado”. Por outro lado, M. Palmira da Silva Pereira (A Nespereira – estudo linguístico, 1948) chama a atenção para a distinção entre a denominação nortenha da nêspera-japonesa (o magnório) e o fruto da nespereira-comum (a nêspera). Para terminar este rol de indicações, em Castelo do Bode: Uma Nascente de Vida, um estudo de 2011, coordenado por João Paulo Fernandes (Universidade de Évora), encontramos: “Eriobotrya japonica/Nespereira-do-Japão” e “Mespilus germanica/Nespereira”.
Autor de “Demanda, Deriva, Desastre: Os Três Dês do Acordo Ortográfico” (Textiverso, 2009)
Jornal Público, 3 de agosto de 2023
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