quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Um conto chamado 2020



Por José Malta
1 de jan. 2020




Imagem: Fundação Isaac Asimov




Até há não muito tempo este título poderia ser associado a uma das obras de Isaac Asimov ou de Arthur C. Clarke, e dar azo a um filme repleto de efeitos especiais. Poderia também ser um dos deliciosos livros de divulgação científica do físico Michio Kaku sobre o que nos reservaria a ciência no futuro, e quais os seus desafios quando chegássemos a esse ano. Poderia ser até mesmo uma canção perdida no vasto universo musical de David Bowie ou uma peça do rock psicadélico dos anos 60 que tenha sido recentemente remasterizada. De facto, o título poderia ser qualquer um destes conteúdos, mas não é. Chegámos a 2020, ano esse que até há bem pouco tempo parecia ser um número demasiado futurístico mas que agora é uma realidade. O que aí virá ainda é bastante incerto tendo em conta os acontecimentos marcantes na anterior década que nos colocaram em situação de alerta em diversos domínios. A incerteza quanto aos novos anos 20 deixa-nos bastante empolgados, mas isso, já se sabe, sempre que se encerra uma década surgem inúmeras questões quanto àquilo que virá na década seguinte.

Nos últimos anos assistimos a uma série de falsas premonições que anteviam o nosso fim. Do célebre dito popular “dos mil passarás, mas aos dois mil não chegarás” até às profecias Maias que apontavam para o fim do mundo no solstício de Inverno em 2012, foram várias as supostas escrituras que visavam acabar com o mundo e muitos aqueles que as seguiam fervorosamente. No fim de contas continuamos ainda por aqui, com o coração aos pulos depois de uma década muito intensa onde os últimos anos nos trouxeram acontecimentos marcantes em diversos níveis. As transformações do ponto de vista político e social ocorreram de um modo bastante repentino, numa altura em que pensávamos que estaríamos mergulhados numa revolução altamente tecnológica, que de facto existe, do que de uma realidade onde a chamada pseudociência começou a ganhar uma certa notoriedade e um certo aroma a distopia paira no ar.

Se há 20 anos atrás pedíssemos a uma criança que desenhasse como seria uma cidade em 2020 iriamos provavelmente obter uma ilustração com edifícios altos de design bastante futurístico, robots a andar pelas ruas, carros voadores, ecrãs gigantes publicitários a cada esquina, em suma, uma imagem semelhante àquelas que costumávamos ver na série Futurama de Matt Groening. De facto, muitos pensariam que alguma da tecnologia megalómana que imperava nos livros e nos filmes de ficção científica já existisse em 2020. A verdade é que continuamos a usar o comboio ou o autocarro para nos deslocarmos quer em curtas quer em longas distâncias, e as escolas e as universidades continuam a usar giz e ardósia nas aulas, como ainda se esperaria que assim fosse. A evolução da tecnologia de bolso foi algo que teve um impacto e um sucesso enorme, pois não pensaríamos que fosse possível ter tão cedo pequenos e potentes computadores nas nossas mãos. Não contaríamos certamente com as crises financeiras que viríamos a enfrentar, o progresso das alterações climáticas que se tornou mais precoce do que o espectável, e toda uma luta contra diversos fatores que necessita de ser cada vez mais sensibilizada, mas ao mesmo tempo evitando também algum fanatismo que é facilmente gerado.

Os anos 20 estão de volta e prometem trazer consigo alguma loucura, pelo menos. Se serão tão loucos como os anos 20 do século passado ainda é bastante cedo para se dizer. Esperemos que tragam consigo uma revolução cultural nas artes, na música e no cinema como aquela que existiu há cem anos atrás. Se acabarão com uma enorme crise financeira como a de 1929, esperemos bem que não, mas numa altura em que só agora acordámos para a questão das alterações climáticas poderá haver uma crise nesse aspeto. Em 2020 era suposto olharmos para o céu como forma de ir mais além em busca de um universo desconhecido como fizéramos nas nossas primeiras missões espaciais. Em 2020 o sonho do Homem continua a ser muitíssimo maior do que os obstáculos que a realidade impõe, mas encontra-se algo estrangulado por aquilo que neste momento o rodeia. Estamos ainda longe de poder viver em Marte ou de conseguir a cura para o cancro, horizontes estes que se pretendem alcançar no futuro, dos quais estivemos bem mais longe há alguns anos atrás. Começámos a olhar para nós mesmos como há muito não o faríamos e parece que só agora nos apercebermos dos problemas que há muito existem.

2020 será mais um conto numa história que é feita por todos nós e que inaugura um novo capítulo que nos deixa bastante ansiosos por saber o que aí vem. Depois de uma década que poderia ser resumida pelas letras das canções do álbum Pure Comedy de Father John Misty, deveremos ter, mais do que nunca, a consciência dos erros mais recentes bem como os erros do nosso passado mais remoto. Deixarmo-nos levar por fatalismos ou por espectativas demasiado otimistas não ajudará em nada, tudo isso sairá sempre ao lado. O futuro é algo que está cada vez mais nas nossas mãos e temos ainda um enorme troço que valerá certamente a pena percorrer. Resta-nos apenas continuar a caminhada onde iremos encontrar várias pedras pelo caminho, e, na pior das hipóteses, guardá-las e um dia poder construir com elas um castelo, tal como Fernando Pessoa o fizera nesse seu tão ilustre poema.



Referência:

José Malta (2020). Opinião. Um conto chamado 2020. Comunidade Cultura e Arte. 1 de janeiro. Disponível em: https://www.comunidadeculturaearte.com/opiniao-um-conto-chamado-2020/. Consultado em 1 de janeiro de 2020.

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