sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Formas de ver o mundo | a poesia



Portugal visto por Alexandre O'Neill






Não é possível falar de identidade portuguesa sem ouvir Alexandre O’Neill, que disse como ninguém o que deve ser dito – num tempo em que se verifica por toda a parte a tentação de maximizar as identidades fechadas. De facto, como vimos depois da Primavera dos Povos (1848), a afirmação das diferenças nacionais teve consequências dramáticas: nacionalismos agressivos, soberanias ilimitadas, conflitos desregulados, tribalismos doentios. Ao falar de Portugal O’Neill põe-nos de sobreaviso relativamente às tentações absolutistas. 
Eduardo Lourenço disse em O Labirinto da Saudade que não somos nem melhores nem piores que outros e que a História tem de ser um revelador de imperfeição e responsabilidade… Pode dizer-se que o poema de «Feira Cabisbaixa» é emblemático – permitindo encarar a História como exigência de não esquecer o lirismo, a tragédia e o carácter pícaro da nossa cultura ancestral. Nascemos dos trovadores, continuámos entre a lírica e a história trágico-marítima, mas nunca esquecemos o escárnio e mal dizer e a ironia de Fernão Mendes ou do Pranto de Maria Parda… Está tudo aqui no nosso Portugal visto por O’Neill…



«Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!


*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...»

Alexandre O’Neill (1924-1986)

Ler. Reler! Sempre.

Agostinho de Morais


Portugal de Alexandre O'Neill, Tu cá, tu lá com o património, Diário de Agosto, Número 4. Disponível no e-cultura.blogues


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