Por Guilherme d’Oliveira Martins*
O debate europeu atravessa um momento especialmente difícil e incerto. Persistem os efeitos da crise financeira, que evoluem lentamente. Há sinais de persistência de uma doença crónica, que ameaça tornar a União Europeia irrelevante e subalterna num mundo de polaridades difusas e de muitas incertezas e perigos – desde a crescente influência das novas potências asiáticas à incontrolável situação do Médio Oriente, passando pela irracionalidade do terror e pela ausência de uma verdadeira capacidade para o diálogo entre culturas. Falta vontade política partilhada, capaz de responder a uma equação de pelo menos três incógnitas: Como dar aos cidadãos voz ativa na definição dos objetivos comuns através de instituições mediadoras eficazes? Como ligar a política e a economia, assegurando um papel ativo da União Europeia no equilíbrio e regulação da cena internacional? Como garantir o desenvolvimento sustentável, baseado no conhecimento, na aprendizagem, na inovação, na coesão e na qualidade de vida?
Eis por que razão a Cultura assume uma importância decisiva, já que a sustentabilidade não pode resumir-se nem à mera gestão dos recursos materiais, nem aos temas ambientais. Importa considerar o valor da memória, da aprendizagem e da capacidade criadora. Ao falar de Cultura, estamos a ligar a fidelidade à memória, o respeito pela herança recebida das gerações passadas à Educação e à Ciência. Veja-se o que se passa relativamente à caixa de Pandora que se chama «Brexit». Ao contrário do que muitos disseram após a decisão do referendo – os efeitos duradouros dessa anunciada saída não têm apenas a ver com câmbios, inflação, crescimento económico ou autonomia, mas fundamentalmente com o enfraquecimento europeu, com perda de coesão, com a desvalorização do conhecimento, com a prevalência dos egoísmos nacionais e com a emergência de conflitos desregulados. Todos esses sinais estão a ser sentidos, com consequências negativas para todos – e o certo é que a incerteza norte-americana não facilita essa evolução.
Perante este pano de fundo, devemos aproveitar a decisão da União Europeia de adotar 2018 como o Ano Europeu do Património Cultural. Não se trata apenas um gesto de boas intenções – mas da demonstração da importância das raízes históricas e culturais; da necessidade de proteger e salvaguardar o património comum; da importância transversal e estratégica das políticas públicas ligadas à Educação, à Formação e à Ciência, bem como do entendimento de que só a proteção do património cultural, no contexto de uma identidade aberta e plural, e a sua ligação à qualidade da criação contemporânea podem corresponder a uma visão integrada do desenvolvimento, capaz de preservar uma cultura de paz.
Não é verdade que Jean Monnet tenha dito alguma vez que se tivesse de recomeçar a construção europeia teria partido da cultura. De facto, a lógica de uma solidariedade funcional exige a diversidade cultural – que, na fórmula de Jacques Delors, se deve associar às causas da paz e da segurança e do desenvolvimento sustentável. Isto não significa, porém, que Monnet ou Schuman desvalorizassem a cultura. Consideravam-na como denominador comum de valores, como fonte da liberdade, da igualdade e da solidariedade e como pressuposto do respeito mútuo e da dignidade humana. A política, a economia e a cultura articulam-se, assim, na defesa do bem comum – ou seja, na procura de interesses vitais comuns que contribuam para a paz e o desenvolvimento. Daí que a sustentabilidade deva ser considerada através do cuidado com a história e com a equidade entre gerações – preservando o património cultural e protegendo a natureza do esgotamento dos recursos…
O objetivo do Ano Europeu do Património Cultural - 2018 é sensibilizar para a história e os valores europeus e reforçar o sentimento da identidade europeia – não como identidade fechada, mas como realidade aberta e multifacetada, ao encontro de outras culturas. De facto, os desafios que o património cultural enfrenta e que têm impacto na sociedade contemporânea envolvem desde a transição para a era digital até à pressão ambiental e demográfica, sem esquecer a prevenção e o combate do tráfico ilícito de bens culturais. Estamos a falar de monumentos, de sítios, de objetos com valor histórico, de acervos de museus, bibliotecas e arquivos, de tradições, de referências. Reportamonos à memória viva, como a língua ou a ciência. Mas, fundamentalmente, tratamos de conhecimentos, de cultura e de humanidade… Ter memória é respeitarmo-nos, é estudar a História e conhecer as raízes. Cuidar do que recebemos é dar atenção, é não deixar ao abandono, é conhecer, estudar, investigar, proteger e conservar. Mas trata-se ainda de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, de realçar o contributo económico do património cultural para os setores criativos e para o desenvolvimento e de salientar o papel do património cultural nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação e à recuperação de património destruído.
Trata-se de seguir e aprofundar o que está consagrado na Convenção Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada em Faro a 27 de outubro de 2005 (e entrada em vigor a 1 de junho de 2011), cuja preocupação fundamental foi assumir a noção crucial de património cultural comum e de construir um conceito de responsabilidade partilhada – envolvendo o património construído e material, o património imaterial e a criação contemporânea. As políticas públicas de cultura devem, assim, começar pelo cuidado da herança e da memória. Mas o património cultural não se refere apenas ao passado, e sim à permanência de valores comuns, à salvaguarda das diferenças e ao respeito do que é próprio, do que se refere aos outros e do que é herança comum. Como compreenderemos a Europa sem o diálogo entre a tradição e o progresso, sem a compreensão da história, desde as raízes da antiguidade, dos judeus, cristãos e muçulmanos, da civilização greco-latina até à modernidade? Esse entendimento não pode, porém, ser confundido com a dissolução de referências ou com o puro relativismo (que é, tantas vezes, antecâmara paradoxal do absolutismo). Urge compreender, afinal, que o que tem mais valor é o que não tem preço. E isso é difícil de entender quando há quem pense que tudo se pode comprar ou vender…
*Administrador Executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, coordenador nacional do Ano Europeu do Património Cultural.
(Texto publicado no Jornal Público de 17.08.2017)
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