sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Puka | Crónica de José Luís Peixoto

 
 
Foto: José Luís Peixoto


Quando morre um cão, há uma tristeza específica. É fina e espeta-se no pensamento. Aleija só de imaginar. Deriva da pena de não termos sido capazes de estar à altura da pureza, da generosidade absoluta.

Está deitada ao meu lado, a ressonar. Acredito que o som dos meus dedos no teclado do computador também a tranquiliza: o ritmo certo/incerto destas palavras: letras-letras-letras espaço letras-letras-letras espaço. Se assim for, se a minha escrita contribuir para a paz do seu sono, está apenas a devolver-lhe aquilo que também recebe deste corpo encostado a mim, a respirar profundamente, como se essa fosse a sua resposta ao tempo.

Quando lhe pouso a mão em cima, deixa-me fazer tudo. Não se incomoda. Essa é a forma que tem de mostrar a sua confiança ilimitada. Não acorda, como se escolhesse não acordar. Oferece o corpo às minhas festas e, se a aperto com um pouco de mais força, deixa escapar um som de prazer preguiçoso, arrastado, nasce-lhe na garganta.

Noutras horas, quando sente um barulho mínimo nas escadas, começa por rosnar e, se o barulho continua, quer ladrar contra a porta fechada. É preciso chamá-la e convencê-la a pensar noutro assunto. Agora, esses episódios parecem histórias inventadas. Neste momento, abrir os olhos e voltar a fechá-los logo a seguir é o máximo de incómodo que aceita. Está tão calma, tem tanto vagar. Às vezes, debaixo das minhas festas, espreguiça-se longamente. Depois, perde a força nos músculos e afunda-se ainda mais no sono.

Eu já estava aqui sentado, a escrever, quando ela chegou muito direita. Caminhou na minha direção sem hesitar, com as patinhas a riscarem um som leve. Numa agilidade súbita, deu um pequeno salto e ficou ao meu lado. Então, encostou-se à minha perna, formámos uma pequena união de calor, e adormeceu.

Foi também assim que chegou à minha vida. Eu não esperava nada, não procurava nada, ela chegou e, sem forçar, conquistou-me inteiro com a sua presença. Quando lhe faço festas na cabeça, os seus olhos descobrem-se entre o pêlo. Há uma certa tristeza nesse olhar antigo, como se carregasse restos de uma mágoa. Compreendo-a e, às vezes, chego a acreditar que também ela me compreende a mim, também ela é capaz de distinguir essa mesma idade no meu olhar, esse silêncio. Encontrámo-nos aqui, mas viemos de lugares distantes.

Durante o dia, passeia sossegada pela casa. Só ela sabe onde vai. Com frequência, escolhe um quadrado de sol no chão e deixa cair as orelhas. Nessas ocasiões, está preparada para qualquer surpresa.

De todas as palavras que existem no mundo, há duas que a enchem de eletricidade: "rua" e "bola". Rejuvenesce com cada uma delas, enlouquece. Na rua, muito interessada, como se estivesse a tomar conhecimento das últimas notícias, vai sempre cheirar os mesmo cantos. Fingindo não fazer caso, partilhamos o pudor do momento em que baixa as duas patinhas de trás e, depois, se afasta de uma pequena poça de chichi. Com a bola, dá saltos no ar, apoia-se em duas patas, chega a ficar assim alguns segundos, como no circo, e parece cega quando corre para apanhá-la. Vai buscá-la onde for preciso.

Quando eu andava na escola primária, numa visita de estudo ao Jardim Zoológico de Lisboa, admirei-me com o cemitério dos animais de estimação. Estava habituado a cães que mal tinham nome, que eram levados numa saca e enterrados no campo. Durante anos, habituávamo-nos a ver um cão quando passávamos numa certa rua, depois, um dia, deixávamos de vê-lo. Era assim.

Hoje, com esta cadelinha, sinto-me como aquele velho mal-humorado, a queixar-se de tudo, a culpar sempre os outros, mas que se derrete com os netos, lhes permite tudo, e quase parece outra pessoa. Talvez por isso, sou agora capaz de compreender que, quando morre um cão, há uma tristeza específica. É fina e espeta-se no pensamento. Aleija só de imaginar. Deriva da pena de não termos sido capazes de estar à altura da pureza, da generosidade absoluta.
Aqui, o tempo desta sala continua à mesma cadência, letras-letras-letras espaço letras-letras-letras espaço. Às vezes, ela estremece de repente. O arco da respiração perturba-se. Está talvez a sonhar. Aperto-a de encontro a mim. Nada te pode fazer mal, pequenina. Eu protejo-te com a mesma dedicação com que me proteges. Esta companhia que partilhamos é eterna.

Publicada na revista Visão, em 20 de fevereiro de 2013

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