segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Vamos ouvir falar dele

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Havemos de chegar à Madeira, mas antes vamos dar prioridade ao ambiente e partir rumo a uma ilha bem maior, no Oceano Pacífico, criada pela acumulação de lixo arrastado pelas correntes para aquele ponto preciso, entre o Havai e a Califórnia. Tem três vezes o tamanho da França e é maioritariamente composta por microplásticos, o que nos traz de volta à costa atlântica, às nossas casas e a um alerta do biólogo espanhol Ricardo Beiras: “A nossa almofada emite quantidades enormes de microplásticos”.


Numa entrevista recente ao jornal espanhol El País sobre a maré de pellets de plástico que assola as praias da Galiza há mais de um mês, o investigador da equipa de Ecotoxicologia e Contaminação Marinha da Universidade de Vigo, obriga-nos a olhar para lá dos oceanos e dos peixes o que neste caso significa focar o olhar na proximidade: a grande exposição dos seres humanos aos microplásticos está na casa de cada um, nos alimentos na roupa, nas embalagens, nos produtos de higiene, numa infinidade de objetos que emitem micropartículas (partículas com uma dimensão inferior a cinco milímetros, mais pequenas do que um grão de arroz), como provavelmente a nossa almofada.

A Galiza já apanhou desde dezembro mais de 3 toneladas de pellets, pequenas bolas de plástico de 5 milímetros que vieram dar às suas praias, atingiram, também, a costa portuguesa, e obrigaram a um debate de urgência no Parlamento Europeu, marcado por pedidos de leis mais ambiciosas.

Mas enquanto o debate continua e a legislação tarda, vale a pena olhar para esta questão, tentar perceber a forma como o plástico nosso de cada dia invadiu as nossas vidas, a nossa casa, até o nosso sono. Não faltam estudos e dados assustadores sobre as doses que inalamos, ingerimos, absorvemos através da pele. Um dos mais recentes, publicado este mês por investigadores das universidades norte-americanas de Columbia e Rutgers, nos EUA, diz que um litro de água engarrafada contém, em média, quase 250 mil fragmentos de nanoplástico (fragmentos com dimensões inferiores a 1 mícron, ou um milésimo de milímetro). Isto, depois de em 2019, a revista científica Environmental Science & Technology e investigadores do departamento de Biologia da Universidade de Victoria concluirem que a ingestão varia em função da idade e sexo, mas cada pessoa come anualmente 74 mil a 121 mil partículas de microplásticos e quem bebe água engarrafada pode ingerir cerca de 9 mil partículas adicionais.

Já este ano, investigadores da Universidade de Toronto e da Ocean Conservancy expõem a carne num artigo publicado na Environmental Pollution: analisaram 16 fontes de proteínas, incluindo frango, vaca e porco e concluíram que cerca de 90% continha microplásticos.

Na verdade, não faltam alertas sobre o tema nos últimos anos. Em 2016, por exemplo, a ativista Ellen MacArthur, em parceria com a McKinsey, estimou que o peso do plástico nos oceanos a meio do século será maior do que o dos peixes. Em 2017, a Organização das Nações Unidas veio dizer que há mais microplásticos no mar do que estrelas na nossa galáxia. Dois anos depois, uma investigação da Universidade de Newcastle avisou que uma pessoa ingere em média 5 gramas de plástico por semana, o suficiente para fazer um cartão multibanco. E, em 2022, investigadores do Vrije Universiteit Amsterdam e do Amsterdam University Medical Center encontraram, pela primeira vez, microplásticos no sangue humano.

Mas é mesmo assim? Respiramos microplásticos a dormir, temos microplásticos a circular nas nossas veias e ingerimos o equivalente a um cartão de crédito por semana? “A nossa exposição é permanente, por inalação, ingestão e contacto. E nas almofadas de microfibras temos plástico, sim”, responde Paula Sobral, professora da Universidade Nova de Lisboa. “Sabemos que os nanoplásticos podem atravessar as membranas biológicas, pele incluída, assim como estão nos alimentos e na água”, acrescenta a investigadora do Mare - Centro de Ciências do Mar e Ambiente. Quanto aos números que vão sendo usados como alerta, “há algumas contas feitas nas costas do envelope” e há, nota, “afirmações que carecem de realismo, embora sejam úteis para sensibilizar as pessoas para o problema”.

Os microplásticos, diz, “estão em todos os compartimentos do ecossistema, na agricultura, na água, na atmosfera, em todo o lado. Fala-se mais dos oceanos, dos peixes, da água, mas também ficam retidos nos solos agrícolas e estão nos hortícolas que comemos, por exemplo”.

Olhar para o futuro, neste caso, exige envolver a indústria para ser parte da solução. “Isso será mais fácil do que apostar numa mudança de comportamentos que pode levar décadas”, defende Paula Sobral antes de deixar um apelo para “consumirmos menos”. Num mundo que produz 430 milhões de toneladas de plástico por ano, apenas 9% do que consumismo é reciclado. “Há um trabalho longo para fazer neste campo”, como afirma a investigadora. E isso significa que ainda vamos ouvir falar muito do plástico. Temos de ouvir falar dele.

Margarida Cardoso. Expresso, 29 de janeiro de 2024

 

Sem comentários: