segunda-feira, 12 de junho de 2023

O sítio onde os camelos se ajoelham

 



SE TUDO AVANÇA À MESMA VELOCIDADE, TUDO TEM IGUAL IMPORTÂNCIA

A

origem das palavras, sempre curioso esse caminho; por vezes real, outras vezes fantasiado.

1.

Deonísio da Silva, estudioso brasileiro da Língua, diz que a palavra almanaque viria do árabe almanakh que designava “o lugar onde os nómadas mandavam ajoelhar os camelos”. Ali, nesse lugar, onde muitos camelos paravam, os humanos trocariam entre si “notícias”, “informações” e “curiosidades”.

Podemos imaginar esse lugar, almanakh, como um lugar com água no meio do deserto; os camelos e os humanos ajoelhavam, bebiam água, descansavam, rezavam e depois começavam a falar sobre o que tinham visto e o que tinham ouvido pelos caminhos do mundo ou noutros locais semelhantes, noutros almanakhs.

A ideia de um espaço de descanso e troca de notícias transformar-se, com o tempo, num objeto concreto e escrito. A passagem de um almanaque-espaço — onde tudo é verbal — para um almanaque escrito. Imagem forte.

E pensar talvez que os modernos jornais vêm daí.

Lemos as notícias e as curiosidades quando paramos, depois do trabalho ou de uma qualquer caminhada (penso nos jornais físicos). E já não são os camelos que se ajoelham para descansar, mas sim os carros que paramos nos sítios certos, para não sermos multados — carros que aguardam, sem quatro patas, mas com motor — e ainda com sede, que não de água.

Nestes caminhos etimológicos — que, para mim, não importam tanto se são verdadeiros, mas se são interessantes — podemos visualizar que jornal e jorna estão lado a lado, jorna — salário diário; jornal, diário de informações.

Recebemos, assim, a jorna informativa, eu diria, como outros recebem o dinheiro do dia de trabalho.

Mereces dinheiro pelo teu dia de trabalho versus mereces informação pelo teu dia de trabalho. Ou, se pensarmos nas ligeiríssimas revistas de fofocas: trabalhaste, mereces a tua jorna de bisbilhotices.

Mas com a internet, a jorna informativa a que temos direito perdeu há muito essa lenta unidade de medida que é o dia.

Nestes tempos que já não correm, explodem (a explosão é mais rápida do que qualquer corrida, mesmo que de cem metros), nestes tempos que por aí explodem, então, a jorna informativa é ao minuto, ao segundo — e, talvez por isso, este empanturrar de informações, no estômago e na cabeça, que param, ao mesmo tempo, a digestão e o pensamento.

“Empanturrice” geral que nos faz ter dificuldades enormes em digerir o tanto que acontece em tão pouco tempo, provocando dificuldades manuais e mentais, em separar a informação-trigo da informação-joio (ervas bem daninhas que nem flor nem fruto dão).

As fake news, nesse sentido, apesar de sempre terem existido, seriam um joio moderno e maligno — nos velozes caminhos que agora utilizam.

(já não vêm de camelo, as notícias falsas — vêm, sim, à velocidade que nenhum relógio, por mais detalhista que seja, consegue acompanhar.)

2.

A velocidade moderna das notícias é a forma moderna de censura, quer seja política, quer seja social. Se tudo avança à mesma velocidade, tudo tem igual importância. A duração da notícia dá a amplitude da sua relevância.

Noutro contexto já o escrevi: a velocidade é o modo de as democracias exercerem a censura de forma aparentemente distraída. Se um assunto importante é falado dois minutos nos noticiários televisivos, e um fora-de-jogo no futebol é repetido, em slow motion e distintos pontos de vista, durante vinte minutos, estamos claramente a dizer o que é relevante e o que não é.

A censura contemporânea não apaga, acelera.

Torna indistinto, pela velocidade, o ouro e o metal pobre, o trigo e o joio.

Imagino um telejornal lento, um telejornal com futuro, um telejornal que não está desatualizado no dia seguinte. Um almanakh com água interminável de onde os camelos e os humanos, com sede, não se querem afastar. Uma água que não se desatualiza.

3.

A lentidão talvez seja, cada vez mais, o meio que a revolução boa utiliza para atravancar, para derrubar, para rasteirar, para boicotar, para sabotar, a pressa e os apressados.

A lentidão ao poder! Eis um lema que o futuro claramente vai levantar nas manifestações das próximas décadas. A velocidade como aquilo que cega e enjoa; os apressados chegam cedo demais para terem tempo para vomitar pelo excesso de aceleração.

Dizer “mais devagar” é afirmar “o que estás a dizer é importante” ou perceber que é verdadeiramente relevante o que está a acontecer. “Mais devagar”, um dos mais belos e raros sussurros contemporâneos.

Gonçalo M. Tavares

Expresso Semanário#2641, de 9 de junho de 2023


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