domingo, 18 de junho de 2023

A menina atrás do espelho


 

 

 Menino, Avião, Capacete, Piloto, Vintage

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Grace continua a voar nos céus dos Estados Unidos

Aaviação tem inúmeras histórias, algumas terríveis, felizmente a maior parte ligadas ao prazer de voar ou, simplesmente, de viajar. Já vão longe os tempos em que andar de avião era um luxo, em que os comandantes vinham cumprimentar os passageiros um a um... Que saudades na rota Londres-Lisboa na Varig, em que o tornedó, em classe turística, era delicioso. Agora levamos farnel, para não pagarmos preços astronómicos, por bocados de pão com presunto rasca.

Quase todas as crianças ambicionam voar, ter a sensação de sair do chão e ver a terra de longe. Para elas e mesmo para alguns adultos é uma magia poder anular a gravidade. O que mais apreciam é ver os pilotos, o cockpit, poderem observar, mesmo sem perceberem, a parafernália de instrumentos que piscam com cores atraentes. Algumas, com mais sorte, fazem os seus batismos de voo, ao lado do piloto e podem mesmo, por momentos, pegar na manche e ensaiar pequenos movimentos. Tive o prazer, ao longo dos anos, de fazer o primeiro voo com todas as crianças da família.

Grace era uma menina inglesa, com quatro anos, que morreu precocemente com um hepatoblastoma, um carcinoma infantil do fígado, muito raro. Hoje seria provavelmente candidata a transplante e estaria viva. O que Grace mais adorava era ir a um parque infantil onde estava um avião de madeira, com dimensão para crianças, em que se sentava, pegava no manche e simulava viagens para longe. Era um biplano dos anos 30, de madeira, aberto, dois lugares, um à frente, outro atrás, e duplo comando. Por vezes ia com uma amiga e permutavam os lugares.

Passaram dez anos sobre a sua morte, quando numa grande inspeção de um Airbus, nos EUA, em que o avião é quase totalmente desmontado, os mecânicos fizeram uma descoberta surpreendente. Quando retiraram o espelho de um dos lavabos, encontraram a fotografia de uma criança lourinha, sentada no seu avião, no parque onde gostava de ir. Muito compenetrada, asas direitas, sabe-se lá a voar para onde? Tinha um texto dos avós. “A nossa neta, que nos foi tirada em três semanas, sempre adorou voar. Vai continuar a voar na Monarch, escondida o mais tempo possível. Viagens felizes, Grace.”

A Monarch era uma companhia inglesa que fazia, sobretudo, voos charter, em toda a Europa. A Grace deve ter vindo ao Algarve várias vezes. Os avós tinham conseguido, provavelmente durante um voo, reservado com esse propósito, introduzir, atrás do espelho, a fotografia e o seu testemunho. Em 2017, a Monarch faliu e este avião foi vendido a uma companhia americana, a Frontier. Uma low cost, com uma história atribulada, mas que ainda resiste. Perante tão insólita descoberta, os mecânicos tiveram a sensibilidade de perceber a importância daquela fotografia, para preservar a memória de Grace. Conseguiram contactar a mãe, que tinha criado um fundo de apoio a crianças com cancro e deram-lhe conta do que tinham encontrado.

Como podem imaginar a emoção e a alegria da família foi enorme. Tiveram um convite para se deslocarem aos EUA, onde foram recebidos pela Administração da Frontier. Depois de uma visita ao avião e de uma emocionante leitura do texto e visualização da fotografia participaram numa reunião do board, convocada expressamente para tomar uma decisão que fez história. Tinham decidido não só deixar a fotografia no mesmo local como rebatizar o avião com o nome de “Grace”. Nos primeiros voos seguintes, os comandantes, no seu discurso inicial, explicaram a razão do nome do avião, que tinha imortalizado uma criança a quem foi tirada a vida precocemente.

A Grace continua a voar nos céus dos Estados Unidos ainda mais alguns anos.

 José Gameiro. Expresso, Revista E., Semanário#2646, de 16 de junho se 2023

 

 

Sem comentários: