TORGA GOSTAVA DE SER UM “FAROLEIRO NAS BERLENGAS”, ALTIVO E INDIFERENTE, MAS NÃO É. AINDA QUE FAÇA INCIDIR A LUZ SOBRE OBJECTOS QUE NÃO VERÍAMOS SEM ELA
Q
uando descobri o muito lá de casa “Diário” de Torga, achei que era o melhor diário português, se bem que não tivesse ainda termo de comparação. Décadas depois, e algumas dezenas de diários depois, tenho a certeza de que é. Talvez seja inusitado este meu apego, porque a demais obra de Torga interessa-me pouco, e não são evidentes quaisquer afinidades de experiência, mundividência ou temperamento. Há, no entanto, uma atitude e um aprumo que me importam, e até mais agora do que na juventude, em passagens rigorosas e cépticas como esta: “A gente pouco sabe e pouco pode. Conhece apenas duas regras de higiene (que o corpo se recusa a observar), três de moral (que o instinto se recusa a praticar), e uma ou duas de civilidade (que só a polícia muito limitadamente nos faz cumprir), e pode apenas o que pode um bicho solicitado por um tropismo fundamental”.
Miguel Torga, autor do “melhor diário português”
Regresso então ao “Diário”, ao volume II, publicado em 1943. Nesse livro, como noutros, estabelece-se uma veemente contraposição entre a “verdade da geografia” (transmontana, alentejana) e a sofisticação estética. Começo por este segundo ponto. Poucas obras literárias portuguesas manifestaram tal desgosto pela literatura. Não estão em causa apenas as vaidades, os oportunismos e os rancores dos literatos, mas os próprios livros. Daí os remoques a Teixeira Gomes, “esterilizado no seu esteticismo”, ao gosto de Eça pela “caricatura”, ao “coração seco” de Flaubert, à sabedoria “sub specie aeternitatis” de Montaigne, escritor que Torga aliás admira. Desagrada-lhe o laborioso e o cerebral (“virtudes de factura”), o desligado, o distanciado. E se deseja uma poesia que seja uma “poderosa máquina”, e não uma “erva rasteira”, duvida que isso se consiga.
O oposto da literatura são aqui os camponeses e os pescadores sofridos com quem o escritor se cruza, a comovente “fraternidade dos ossos” que lhe despertam, porque vivem na natureza, e o homem, “quando se coloca fora da natureza”, é uma “monstruosidade”. Lisboa e Porto não merecem elogios, mas as referências à “vacuidade” de Coimbra e à “poesia da pasmaceira” de Leiria parecem sugerir que a zona centro é como as coisas mornas que Deus abomina. À literatura como justificação da literatura, prefere o diarista as povoações abandonadas, ou alagadas por causa de uma barragem, os doentes no consultório ou numa enfermaria, as pessoas envelhecidas ou com cancros terminais. Sem esquecer aquela mulher do Gerês, cheia de renúncia ou amargura, que lhe deu o triste e bom conselho “não queira coisas impossíveis”.
Os lugares-comuns torguianos, o “telúrico” e o “agónico”, são inevitáveis, até porque há poucos escritores que consigam uma e outra coisa em tão alto grau. Em meados da década de 1940, tem Torga 30 e tantos anos, o desespero adensa-se, os amigos mostram-se indignos, as pessoas levam a vida sem seriedade, isto para não falar dos males da pátria, ou da guerra. Quando ele se confessa “descrente”, é uma descrença que vem sobretudo da decepção. Torga gostava de ser um “faroleiro nas Berlengas”, altivo e indiferente, mas não é. Ainda que, como um faroleiro, faça incidir a luz sobre objectos que não veríamos sem essa luz. Pode ser a musa de um grande poeta que tem agora 70 anos e viveu mais intensamente nos poemas que fora deles. Pode ser um choupo municipal abatido à machadada, árvore que não se curva a cada golpe, mas no fim cai de uma vez. Ou uma estátua da qual diz: “Creio que nunca vi ninguém sofrer tanto como um busto de Camilo.”
Pedro Mexia, Revista E, Expresso, Semanário#2640, de 2 de junho de 2023
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